terça-feira, 27 de junho de 2023

Os despejos do ponto de vista da ética

 


No final de março deste ano terminou o prazo da suspensão dos despejos por causa da pandemia da Covid-19. Companheiros e companheiras, irmãos e irmãs, cuidado! Os despejos estão voltando!

Com a esperança de poder colaborar para que isso não aconteça, faço agora uma leitura - análise e interpretação - dos despejos do ponto de vista da ética: filosófica (racional) e teológica (racional à luz da fé). Nessa leitura, destaco três pontos: 

1. Tratando-se de pessoas humanas, a própria palavra “despejo” é desrespeitosa e ofensiva. Pessoas humanas não se despejam. Hoje, até o lixo que pode ser reciclado, não é despejado, mas descarregado com o devido cuidado. Só é despejado - sem nenhum cuidado - o lixo que não tem mais condições de ser reaproveitado. Portanto, despejar pessoas humanas, significa tratá-las como lixo que não pode mais ser reaproveitado. O Papa Francisco tem razão quando diz que hoje os trabalhadores e trabalhadoras não são (somente) “excluídos”, mas “descartados”. Quanta iniquidade!  

2. Como já disse em outras ocasiões, todo despejo é injusto, desumano, antiético e imoral: uma imoralidade humana diabólica! Ora, como normalmente os despejos são praticados por “ordem judicial”, essa imoralidade é hipocritamente legalizada e institucionalizada.

3.Por experiência pessoal, posso dizer que os Movimentos Sociais Populares - como o MST e muitos outros - não promovem “invasões”, mas “ocupações”. Ora, “ocupar” terrenos sem função social é legítimo e ético, seja do ponto de vista filosófico (racional), seja do ponto de vista teológico (racional à luz da fé). Exemplifico:

  • No campo: é legítimo e ético ocupar terrenos e latifúndios improdutivos ou destinados à produção de monoculturas “envenenadas”, para fins de exportação e obtenção de lucros cada vez maiores, sem atender as reais necessidades do povo;
  • Na cidade: é legítimo e ético ocupar terrenos abandonados (ou - como se costuma dizer - “largados”) para fins de especulação imobiliária: no presente ou no futuro (quando os terrenos serão mais valorizados). 

    Esses terrenos - no campo e na cidade - do ponto de vista da ética, são de quem precisa deles para morar, trabalhar e viver dignamente. A destinação dos bens para uso de todos os seres humanos é de direito primário; a posse ou propriedade, de direito secundário, subordinado ao direito primário (S. Tomás de Aquino e Pensamento Social Cristão).

    Sempre do ponto de vista da ética, só existem três casos nos quais as pessoas de uma ocupação podem e devem ser removidas (não despejadas), com dignidade e respeito, para outras moradias:

    1. Quando a ocupação se encontra numa área de risco de vida. Nesse caso, o Poder Público tem a obrigação de remover, o mais rápido possível, as pessoas para outras moradias dignas, já prontas para serem habitadas, ou arcando com a locação social até as moradias definitivas ficarem prontas.

    2. Quando a ocupação se encontra numa área de preservação ambiental. Neste caso, porém, as pessoas só podem ser removidas quando outras moradias dignas estiverem prontas para serem habitadas.

    3. Quando a ocupação se encontra numa área de utilidade pública. Neste caso vale o que eu disse no parágrafo anterior a respeito de área de preservação ambiental.

    Em todos os outros casos, o Poder Público deve respeitar as ocupações como um direito humano e cuidar delas como cuida dos povoados no campo e dos bairros na cidade.

    Por tratamos de “despejos”, termino, fazendo a memória da ocupação “Sonho Real”, no Parque Oeste Industrial, em Goiânia (GO). Pela pressão dos “coronéis urbanos” (os donos das grandes imobiliárias), no dia 16 de fevereiro de 2005 - de madrugada e numa verdadeira operação de guerra com muita violência policial - cerca de 14 mil pessoas, entre as quais muitas crianças, idosos e idosas, foram despejadas pelo Governo do Estado de Goiás de suas moradias e jogadas na rua.

    O resultado dessa operação cruel foi: duas mortes reconhecidas (suspeita-se com razão de outras mortes), muitas pessoas feridas e crianças traumatizadas. Realmente, não dá para entender como o ser humano - em nome do “deus capital” - o “deus dinheiro” - seja capaz de uma perversidade diabólica como essa.  

    É a pior mancha da história de Goiânia e, com certeza, uma das piores da história do Brasil.

    Peço a Deus que um fato como esse nunca mais se repita!

    Moradia digna já!

    Despejos nunca mais!


    Campanha Nacional Despejo Zero (@despejozero) / Twitter


    Marcos Sassatelli, Frade dominicano
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
    Professor aposentado de Filosofia da UFG

    Goiânia, 26 de junho de 2023


    terça-feira, 20 de junho de 2023

    Resistência e Luta com Fé - 17ª Romaria da Terra e das Águas (2)

     


    Como disse na primeira parte do artigo, participar da 17ª Romaria da Terra e das Águas, em Catalão (GO), no dia 03 deste mês de junho, foi uma experiência boa. Todos e todas ficamos mais unidos e mais fortalecidos, em nossa vontade de resistir e lutar com fé, para cuidar da Casa Comum, criando uma cultura ecológica integral

    Entre outras pessoas, Carla Oliveira, da Comunidade Macaúba, falou sobre o processo de resistência de sua família, que teve a posse da terra tomada judicialmente pela mineradora MOSAIC. Com muita organização e luta, a família conseguiu o direito a uma indenização justa pela terra. “Aqui em Catalão - afirma ela - nós chegamos a um ponto que a gente teve que se unir e percebemos que juntos nós conseguimos manter a esperança de alcançar a justiça”. Hoje, Carla acompanha famílias de outras Comunidades que buscam direitos negados pelas mineradoras (Veja a 1ª parte do artigo em: http://freimarcos.blogspot.com/2023/06/no-dia-03-desde-mes-de-junho-cerca-de.html).

    Tendo consciência (apesar dos ensinamentos do Papa Francisco sobre a Igreja sinodal e a Igreja “em saída”) da forte corrente conservadora da Igreja hoje, contrária à Igreja renovada e libertadora do pós-Concílio Vaticano II e da pós-Conferência de Medellín, permito-me algumas reflexões pessoais, que querem ser uma crítica construtiva e, ao mesmo tempo, um alerta para as próximas Romarias.  

    1. Antes de tudo, lembremos que a Romaria da Terra e das Águas nasceu umbilicalmente ligada ao novo Jeito de ser Igreja das CEBs, que é hoje - em nossa realidade - o jeito de ser de Jesus de Nazaré e das primeiras Comunidades Cristãs.
    2. Em sua luta, a Romaria deve expressar, testemunhar e celebrar esse novo jeito de ser Igreja.
    3. Não podemos permitir que a Romaria seja “enquadrada” num modelo de Igreja pré-conciliar, conservador e clerical.
    4. Tendo consciência que na Igreja de Jesus de Nazaré, todos e todas são iguais, irmãos e irmãs, na variedade e diversidade dos carismas (dons) e ministérios (serviços), devemos combater e evitar toda forma de poder clerical, “mitrado” ou não.
    5. A dignidade está na pessoa humana e não no cargo que ela ocupa ou no serviço que ela presta. É a pessoa humana que dá valor ao cargo ou serviço e não o contrário. O meu irmão ou irmã Morador ou Moradora de Rua tem a mesma dignidade e o mesmo valor que o Papa. A única diferença está na intensidade ou profundidade do amor com o qual a pessoa humana ocupa o seu cargo ou presta o seu serviço.
    6. Por ser a Igreja o Povo de Deus, é o Povo de Deus que celebra. Precisamos evitar que a Celebração final da Romaria seja formal, clerical, teatral e atemporal. Ela deve ser preparada pelo Povo, seguindo - na fidelidade ao Mistério Pascal - o método (caminho) “ver, julgar e agir”, ou seja, “analisar, interpretar e libertar”. A Romaria deve celebrar o Mistério Pascal na Vida (na Caminhada) e, ao mesmo tempo, a Vida (a Caminhada) no Mistério Pascal. Não pode ser uma Celebração “enlatada” e “triunfalista”.
    7. Na Romaria deve ter mais espaços para que o Povo possa se expressar livremente, dando seu testemunho e para que todos e todas possam ouvir a sabedoria que vem de Deus na voz do seu Povo e meditar sobre ela. Por isso, precisam ser valorizados os momentos da “fila do Povo” (como se costuma chamar) e a partilha da Palavra na Celebração final.
    8. Desejo profundamente que na Romaria da Terra e das Águas seja realmente vivido e testemunhado - na variedade e diversidade de suas expressões - o “jeito de ser Igreja“ das CEBs, que é o ”jeito evangélico de ser Igreja”, hoje.
    9. Lembro ainda que todo cristão ou cristã e toda Pastoral ou Movimento Eclesial tem a liberdade de fazer e viver experiências de fé radicais ou “de fronteira”, mesmo que não sejam assumidas oficialmente pela Igreja.
    10. Por fim, quando for necessário - para não perder o sentido original libertador da Romaria da Terra e das Águas num modelo de Igreja conservador e pré-conciliar - a Comissão Pastoral da Terra (CPT) pode assumir diretamente a coordenação da Romaria, sem envolver toda a Igreja local.

    É isso que eu queria dizer com toda sinceridade e amor à Igreja de Jesus de Nazaré. “Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef. 5,25).


                                                      Nossa Senhora da Terra - Diga não ao Desmatamento

    Mártires da caminhada

    17ª Romaria da Terra e das Águas




    Marcos Sassatelli, Frade dominicano
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
    Professor aposentado de Filosofia da UFG

    Goiânia, 19 de junho de 2023



    domingo, 18 de junho de 2023

    O Ser humano com o Outro absoluto (2)

     


    (Continuo as reflexões do artigo anterior da série sobre o Ser humano: segunda parte)

    Em segundo lugar, precisa reencontrar no real - previamente aceito em sua consistência e autonomia - o sentido da "presença ontológica" (em linguagem filosófica) ou “presença criadora” (em linguagem teológica) de Deus (Cf. Podeur, L. Imagem moderna do mundo e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p. 117- 142).

    “Suponhamos o projeto científico plenamente acabado. Nesta hipótese tudo que acontece no mundo se explica fundamentalmente pelo mundo: desde a existência do planeta Terra até a tempestade de ontem à tarde (...). Isto significa que tudo que acontece no mundo tem a sua razão ou explicação no estado presente ou anterior do próprio mundo" (Ib., p.121-122).

    É com essa hipótese do “projeto científico plenamente acabado” que a filosofia e a teologia devem trabalhar daqui por diante. A filosofia e a teologia não são ciências "experimentais"; não explicam "experimentalmente" o mundo. A filosofia (à luz da razão) e a teologia (à luz da razão, iluminada pela fé) partem da explicação "experimental", vão além dela, voltam para ela e, assim, num processo contínuo de reflexão, procuram "compreender" sempre mais profundamente o mundo, seu sentido e seu valor.

    Ora, pergunto: Como reencontrar o sentido da "presença ontológica" ou “presença criadora" de Deus no quadro de um mundo consistente e autônomo em seu funcionamento?

    Deus não é "motor": "primeiro motor em cima" (Aristóteles e S. Tomás de Aquino) ou "primeiro motor na frente" (Teilhard de Chardin).

    "Se Deus não pudesse estar presente senão à maneira de um 'motor' ou de uma força, a situação não teria saída; a 'ausência cósmica' do divino seria uma ausência definitiva. Deus estaria morto. Mas a situação não é esta! Existe outra espécie de presença divina, muito mais essencial e característica do que uma presença simplesmente motriz ou finalizante" (Ib., p. 123).

    Essa outra espécie de presença divina é a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus; ela designa a presença da Fonte ou Fundamento absoluto do Ser nos seres (a "presença ôntica", ao contrário, designa a presença dos seres uns aos outros).

    Por "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus entende-se o fato de que o mundo "perpetuamente, a cada instante, atualmente, é 'posto' por Deus, 'sustentado' e 'fundado' por Ele na existência" (Ib., p. 124-125). Os termos "perpetuamente", "atualmente" são inadequados enquanto parecem colocar Deus no tempo. Em verdade, eles se referem à duração do mundo e indicam que a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus coexiste com cada um dos momentos desta duração.

    Em outras palavras, sem Deus atualmente "pondo" o mundo, ele não existiria. A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus dá ao real material, ao que existe a sua consistência e autonomia, impedindo que ele se dissolva no nada. Ela não é "movimento" ou "organização", não é "unificação" ou "complexificação"; não é, enfim, "sobrelevação" ou "superativação".

    Estas expressões disfarçam a originalidade da relação, que chamamos "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus. "Tendem a fazer dela o que ela não é, isto é, um tipo particular de ação, que viria apenas aumentar o número das outras ações e cuja inexistência no devir cósmico é mostrada pela investigação científica" (Ib., p. 125).

    "Presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus significa: "posição de" (do mundo); ela torna "presente" no sentido absoluto do termo.

    (Continuarei no próximo artigo da série: a terceira parte do mesmo)         




    Marcos Sassatelli, Frade dominicano
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
    Professor aposentado de Filosofia da UFG

    Goiânia, 17 de junho de 2023



     





    sábado, 17 de junho de 2023

    Resistência e Luta com Fé - 17ª Romaria da Terra e das Águas (1)

     


    No dia 03 desde mês de junho, cerca de duas mil pessoas, vindas de diversos lugares da Diocese de Ipameri, de outras regiões do Estado de Goiás e do Distrito Federal reuniram-se em Catalão (GO) para a 17º Romaria da Terra e das Águas.

    De Goiânia, participaram pessoas da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Paróquia Nossa Senhora da Terra (Jardim Curitiba, Região Noroeste), entre as quais este abaixo assinado (que teve a felicidade de acompanhar e conviver com as comunidade da Paróquia por diversos anos) e de Movimentos Sociais Populares. A ida de um ônibus lotado foi organizada – com muito entusiasmos – por um “Coletivo de Mulheres de luta” da Região, o apoio de jovens da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) e a colaboração do nosso companheiro deputado estadual Mauro Rubem.

    Tivemos ainda a presença de diversos religiosos e religiosas, padres e os bispos das Dioceses de Ipameri (a anfitriã), Dom Francisco; de Goiás, Dom Jeová Elias (referencial da CPT Goiás na CNBB); de São Luís de Montes Belos, Dom Lindomar; de Rubiataba e Mozarlândia, Dom Francisco Agamenilton; de Luziânia, Dom Waldemar (presidente da CNBB-Centro Oeste).

    O tema da Romaria – como já é de conhecimento público – foi: “Cuidar da Casa Comum – Por uma Cultura ecológica integral” e o lema: “Convertei-vos e vivereis” (Ez. 18, 32).

    A concentração para a caminhada se deu por volta das 13:30 horas “em frente à nova Igreja da cidade de Catalão, Paróquia de São Francisco de Assis, onde as caravanas foram acolhidas calorosamente. Todos e todas puderam se alimentar, assistir as primeiras apresentações culturais do dia e visitar a Tenda da Educação, onde crianças e jovens da Região expuseram trabalhos inspirados no tema da 17ª Romaria”.

    Na abertura, Dom Francisco falou sobre o tema da Romaria e alertou: "A Igreja ao celebrar este momento, chama atenção de toda a Comunidade para os problemas maiores que vivemos. O Papa Francisco, ao nos brindar com a 'Laudato Sì', nos chama atenção para problemas que rondam a sociedade, sobretudo o aquecimento global, pelo descuido com a natureza. Se continuar assim, infelizmente, um futuro próximo deixará para a humanidade um saldo negativo, que pode tornar impossível a humanidade sobreviver. Há certas situações que são maiores, que dizem respeito ao que os políticos das Nações podem fazer acontecer, mas se não tomarmos consciência, acabamos aplaudindo ações que não são boas”.

    Em depoimentos, Comunidades rurais - locais e de outros Municípios da Diocese de Ipameri - e Movimentos Sociais Populares denunciaram os impactos negativos das empresas de mineração da região sobre suas vidas e compartilharam o êxito das experiências de Resistência e Luta com Fé, alertando sobre a necessidade de tomar consciência das questões socioambientais.

    Representantes dos Acampamentos Ana Ferreira e Oziel Alves Pereira do MST e da Comunidade de pequenos proprietários da Vala do Rio do Peixe “compartilharam também experiências de Resistência e Luta na terra, de práticas agroecológicas de produção de alimentos sem veneno nas lavouras comunitárias e de recuperação de nascentes”. 

    A caminhada “foi um momento de fortes reflexões, que culminaram - na Praça Marca Tempo - com a apresentação teatral Caminho de Emaús, a encenação da passagem bíblica e a partilha real dos alimentos entre todos os participantes”.

    Chamada dos Mártires - “um momento emocionante de memória dos agentes pastorais, religiosos e religiosas que perderam suas vidas na defesa dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras do campo - foi encerrada com uma homenagem às vítimas do COVID-19, simbolizadas pela presença do violão do agente e animador da CPT Goiás, Romerson Alves, que faleceu em 16 abril de 2021, sem ter a chance de se vacinar”.

    A caminhada terminou na praça da Igreja Nossa Senhora do Rosário, onde foi montada a estrutura para a realização da Missa Campal. A Celebração da Eucaristia foi encerrada com a entrega da cabaça simbólica da Romaria da Terra e das Águas para o bispo da Diocese de São Luís de Montes Belos, que irá sediar a próxima edição do evento.

    Enfim, a participação na Romaria foi uma experiência muito bonita de Resistência e Luta com fé de irmãos e irmãs, seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré, que nos fez crescer na unidade e no compromisso para com um outro Brasil e um outro Mundo possíveis; o Reino de Deus acontecendo na história do Ser humano e da Mãe Terra, Nossa Casa Comum.

    (Na segunda parte do artigo, farei algumas reflexões pessoais como crítica construtiva e, ao mesmo tempo, como alerta para as próximas Romarias da Terra e das Águas) 







    Marcos Sassatelli, Frade dominicano
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
    Professor aposentado de Filosofia da UFG

    Goiânia, 16 de junho de 2023




     

    quinta-feira, 8 de junho de 2023

    Injustiças que causam gritante desigualdade social

     

    O sistema capitalista neoliberal - por sua própria natureza - é um “sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA, 385), estruturalmente injusto, desumano e antiético. Para se manter e fortalecer, ele precisa sempre criar - hipócrita e descaradamente - novas injustiças, legalizá-las e institucionalizá-las. Uma árvore má não pode dar frutos bons!

    Aqui denuncio e repudio, com toda firmeza, duas injustiças que - junto com outras - causam gritante desigualdade social: a questão dos “auxílios” dos magistrados (juízes e desembargadores) e a questão da “precariedade” da saúde pública, São injustiças de uma perversidade diabólica, que clama diante de Deus!

    A respeito da questão dos “auxíliosdos magistrados, “o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) autorizou os magistrados brasileiros a receberem mais um benefício. Dessa vez, a categoria passa a ter direito ao “auxílio-creche”, que já é pago aos servidores dos Tribunais.

    O novo benefício foi definido após análise de pedido de providências da Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS). Com isso, o CNJ criou enunciado administrativo que obriga Tribunais de todo o País a pagarem auxílio-creche a seus magistrados. Para os magistrados gaúchos, por exemplo, o pagamento será retroativo à data em que o benefício começou a valer para os servidores locais.

    Em Goiás - cujos magistrados têm salários que variam de R$ 35 a R$ 37 mil - o benefício foi solicitado em 2021 pela Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (ASMEGO), entidade que representa juízes e desembargadores. Mas agora, com a decisão do CNJ, o pedido deve ser apreciado.

    O auxílio-creche vai se somar a outros já recebidos pelos magistrados, como auxílio-moradia, auxílio-alimentação, auxílio-saúde, auxílio-livro, licença-prêmio indenizável, gratificações por acervo e por serviço cumulativo, indenizações de férias (magistrados têm direito a 60 dias de férias, podendo 30 dias ser transformado em pecúnia)” (https://www.podergoias.com.br/ materia/14483/com-salarios-de-r-37-mil-juizes-goianos-terao-direito-a-auxilio-creche: 24/04/23).

    É muita cara-de-pau! Trata-se realmente de um deboche! Como podemos confiar na “justiça” desses magistrados? É essa a “justiça” que promovem e defendem?

    Por que os magistrados não criam uma lei que dê o auxílio-moradia, o auxílio-alimentação, o auxílio-saúde e o auxílio-creche a todos os trabalhadores e trabalhadoras que ganham o salário mínimo? São esses que precisam de “auxílios” e não os magistrados.

    A respeito, pois, da segunda questão, a da “precariedade” da saúde pública, a Constituição Federal de 1988 afirma: “A saúde é direito de todos/as e dever do Estado, garantido mediante políticas públicas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (Art. 196). Reparem: “acesso universal e igualitário”! Quanta hipocrisia!

    Em teoria o Sistema Único de Saúde (SUS) é um dom melhores Planos de Saúde Pública do mundo, mas na prática não funciona. A extrema precariedade da Saúde Pública acaba sendo legalizada e institucionalizada.

    Vejamos: Crise no SUS: Pelo menos 746 pedidos de cirurgias eletivas constam pendentes na lista de regulação dos Estados e capitais há mais de 10 anos. O número foi extraído apenas das filas dos Estados e capitais que atenderam ao pedido de acesso à informação analisados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), mas já revelam uma sistêmica fragilidade na gestão do SUS, que aflige pacientes e famílias em todo o País”.

    Entre tantos que poderiam ser lembrados, um exemplo concreto: “Um paciente de 36 anos, morador de Fortaleza (CE), confirmou que entrou na fila de espera para retirar um tumor de mama ainda em 2007. Há um ano ele decidiu não esperar mais. ‘Me ligavam todos os anos para agendar a cirurgia, que nunca aconteceu. No ano passado desisti de esperar e resolvi ‘pagar’, conta o homem que não quis ser identificado” (https://portal.cfm.org.br/noticias/crise-no-sus-pacientes-aguardam-mais-de-10-anos-na-fila-de-espera/).

    Pergunto: Se a saúde “é direito de todos/as e dever do Estado”, diante da situação de pessoas doentes ou gravemente doentes - o Governo Federal e os Governos Estaduais não deveriam - mesmo precisando suspender ou adiar outras atividades - atender imediatamente essas pessoas, que, muitas vezes, precisam de um socorro urgente ou urgentíssimo? O Governo Federal e os Governos Estaduais não são moralmente responsáveis pelas inúmeras mortes que podiam ter sido evitadas?  

    Segundo estudo de 2018, no Brasil estima-se que 153 mil mortes por ano sejam causadas pelo atendimento médico de má qualidade (no mundo são 5 milhões) e 51 mil mortes por ano pela falta de acesso a atendimento de saúde (no mundo são 3,6 milhões) (cf. https://g1.globo.com- 2018)Infelizmente, trata-se de uma situação, que - mesmo sendo de uma perversidade diabólica institucionalizada - é considerada “normal”!

    Unidos e organizados, lutemos por um SUS de qualidade para todos e para todas. A saúde é um Direito Humano fundamental! Ora, “Direitos Humanos não se pede de joelhos, exige-se de pé” (Dom Tomás Balduino).

    Fonte: Agência Brasil
    Vamos acabar com a fila! Fila nunca mais!


    https://www.brasildefato.com.br/2018/02/24/ 
    seminario-nacional-debate-sistema-judiciario-brasileiro
    “Aprendemos que Instituições não são neutras” (Gleisi Hoffmann)



    Marcos Sassatelli, Frade dominicano
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
    Professor aposentado de Filosofia da UFG

    Goiânia, 07 de junho de 2023



    segunda-feira, 15 de maio de 2023

    A CPI do MST - Uma CPI hipócrita e antiética

                     

    O presidente da Câmara Federal, Arthur Lira (PP-AL), no dia 26 de abril deste ano, determinou “a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Casa para investigar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)”. O requerimento “obteve 172 nomes, ultrapassando o número mínimo de 171 assinaturas exigidas. A CPI do MST terá 27 titulares e 27 suplentes, e prazo de até 120 dias para realizar o inquérito”.

    O principal objetivo dessa CPI - segundo o presidente da Câmara - “é o aumento das invasões de terra no país neste ano. Apenas no mês de abril, o MST contabiliza ao menos 11 propriedades rurais, além de uma área de unidade de pesquisa da Embrapa em Petrolina (PE)”.

    De acordo com o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), “é preciso descobrir de onde vem o dinheiro e as orientações para que os Movimentos ocorram de maneira sincronizada em todo o Brasil. Trata-se de uma CPI que vai investigar invasões de propriedades. Existem três, quatro Movimentos que se tem notícias de estarem praticando esses atos. Precisamos saber quem está pagando essa conta e se há participação do Estado brasileiro. São atitudes que - segundo ele - causam danos à cidade e passam insegurança no campo” (https://www.canalrural.com.br/noticias/criada-cpi-para-investigar-o-mst/ - 27/04/23).

    Filosófica e teologicamente falando, “tudo o que é humano é ético e tudo o que é desumano é antiético”. À luz desse princípio, denuncio: a CPI do MST é desumana e antiética (injusta), além de hipócrita e mentirosa (farisaica). Os membros da Comissão sabem muito bem que o MST e os outros Movimentos de Trabalhadores Rurais nunca realizaram “invasões”, mas “ocupações”.

    Trabalho, Teto, Terra são direitos sagrados de todos e de todas. As “ocupações” têm a finalidade de reivindicar esses direitos e, ao mesmo tempo, acelerar o processo da Reforma Agrária Popular para que todos e todas possam conquistá-los.

    Do ponto de vista ético, a terra improdutiva no campo (sobretudo, latifúndios) e a terra destinada à especulação imobiliária na cidade, é de quem precisa dela para morar, trabalhar e viver com dignidade.

    Os grandes proprietários de terra no campo - os “coronéis rurais” - e os grandes proprietários de terra na cidade - os “coronéis urbanos” - são, juntamente com os donos das grandes empresas multinacionais, os esteios do capitalismo neoliberal, que - lembra-nos o Papa Francisco - “exclui, degrada e mata”.

    Santo Tomás de Aquino e o Pensamento Social Cristão nos ensinam que a destinação dos bens para uso de todos os seres humanos é de direito primário e a posse ou propriedade particular, de direito secundário. Quando o direito secundário impede o acesso de todos e de todas ao direito primário, é antiético (injusto).

    Faço agora um pedido concreto à Câmara Federal e ao Senado: no lugar da CPI do MST, criem a CPI dos 1% da população mais rica do Brasil. Essa sim é uma CPI urgente, necessária e ética. Como pode 1% da população brasileira ter conseguido um patrimônio igual ao da metade dessa mesma população (50%)? Não são esses os verdadeiros “Invasores” e “assaltantes” do país? Não são esses os responsáveis pelos mais de 33 milhões de brasileiros e brasileiras - irmãos e irmãs nossos - passando fome? Deputados Federais e Senadores, é essa perversidade - institucionalizada e legalizada - que vocês devem investigar.

    Os Movimentos Sociais Populares - como o MST - lutam por seus direitos e por um outro mundo possível. “Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas mãos de vocês (participantes dos Movimentos Populares), na capacidade de vocês se organizarem e promoverem alternativas criativas na busca diária dos três T (trabalho, teto, terra), e também na participação de vocês como protagonistas nos grandes processos de mudança, regionais, nacionais e mundiais” (Papa Francisco. 2º Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Santa Cruz de la Sierra - Bolívia, 09/07/15).

    Deputados Federais e Senadores, é isso e somente isso que o MST e os outros Movimentos Sociais Populares do campo e da cidade estão fazendo, com muita garra, heroísmo e esperança.

    Eles não precisam de uma CPI. Não sejam ridículos diante do mundo inteiro! Acabem com essa CPI hipócrita e antiética do MST!

    MST - Muito além da ocupação

    Gabriela Moncau - Brasil de Fato


    Marcos Sassatelli, Frade dominicano
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
    Professor aposentado de Filosofia da UFG

    Goiânia, 14 de maio de 2023

     







    segunda-feira, 8 de maio de 2023

    O Ser humano com o Outro absoluto (1)

     

    No artigo anterior “O Ser humano com o mundo material e vivente e com os outros” (da série de artigos sobre o Ser Humano, intercalados com outros) vimos que a vida do Ser humano "se encontra sempre em certas circunstâncias, uma disposição em torno das coisas e demais pessoas. Não se vive num mundo vago, já que o mundo vital é constitutivamente circunstância, é este mundo, aqui, agora. E circunstância é alguma coisa determinada, fechada, mas ao mesmo tempo aberta e com largueza interior, com vão ou concavidade onde mover-se, onde decidir-se: a circunstância é um álveo que a vida se vai fazendo dentro de um rio inexorável. Viver é viver aqui e agora - o aqui e o agora são rígidos, impermutáveis, mas amplos" (Ortega y Gasset, J. Que é Filosofia? (Lição XI). Livro Ibero-Americano, Rio de Janeiro, 19712, p. 184).

    O Ser humano “é estruturalmente orientado para o futuro; ele é um ser estruturalmente aberto à esperança. O futuro esconde possibilidades que o Ser humano nunca pode conhecer inteiramente. Todas estas possibilidades se referem ao Ser humano: são suas possibilidades, embora não possa realizá-las e nem as realizará todas. Por isso, o Ser humano pode olhar para o futuro com esperança (...). O Ser humano tem o direito de projetar a própria esperança também além da morte" (Gevaert, J. Il problema dell'uomo. Introduzione all'Antropologia Filosofica. Elle Di Ci, Torino, 19814, p. 189).

    Desse “olhar para o futuro com esperança” - uma exigência da razão e, mais ainda, da razão iluminada pela fé - nasce a relação do Ser humano (“ser-no-mundo”) “com-o-Outro absoluto”: Deus.

    A respeito dessa relação, não podemos dizer a mesma coisa das outras duas relações: “com-o-mundo material e vivente” e “com-os-outros” (semelhantes). Ela não é um fato incontestável, indubitável e evidente por si mesmo; não só precisa ser mostrada e examinada, mas demonstrada e experiênciada. Mas como?

    Na tentativa de encontrar uma resposta - limitada e incompleta evidentemente - a esta pergunta, sugerimos algumas "pistas" de encaminhamento de nossas reflexões, que nos parecem estar de acordo com as conquistas e exigências do mundo moderno e contemporâneo.

    Em primeiro lugar, é necessário aceitar plenamente a consistência e a autonomia próprias do real, ou seja, de tudo o que existe. Ora, aceitar plenamente a consistência e autonomia próprias do real significa também aceitar a "ausência cósmica" de Deus.

    "Poderia alguém continuar procurando obstinadamente um 'buraco' no funcionamento do universo e assim tentar restabelecer uma 'presença' de Deus. De um ponto de vista estritamente lógico esse 'buraco' não é, em si, impossível: a biologia, por exemplo, poderia, num caso extremo, ir de encontro a fenômenos inexplicáveis pelos recursos naturais do cosmos. Mas, na realidade, semelhante 'buraco' é pouco plausível. De um lado, a história mostra que a ciência veio reduzindo sucessivamente, desde o século dezesseis, os campos que pareciam depender do influxo divino. Além disso e sobretudo, a mentalidade da ciência, o seu horizonte, as suas pressuposições de base, se impuseram a nós mais do que os seus resultados: em particular, a convicção íntima de que o real físico se explica por si mesmo e de que um movimento na direção de Deus, que pretendesse fundar-se nos resultados ou questões propriamente científicas, seria um paralogismo (raciocínio que parece verdadeiro, mas não é). Hoje, as provas chamadas 'científicas' da existência de Deus são sempre menos usadas e menos aceitas" (Cf. Podeur, L. Imagem moderna do mundo e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p. 120).

    A procura de "buracos" na causalidade material leva a questão de Deus para um terreno equivocado. "Suponhamos, por exemplo, que o aparecimento da vida sobre a terra exija uma causa extraterrestre; por que não poderia tratar-se de seres extraterrestres, gigantes galácticos (...), que teriam vindo 'inseminar' o globo? Não seria uma 'solução' mais econômica, do ponto de vista da lógica? (...). Em vez de nos preocuparmos com soluções de continuidade na trama da causalidade cósmica (que exigiriam a intervenção de um motor extramundano), coloquemo-nos na hipótese inversa e tentemos ver Deus neste contexto” (Ib., p. 121). Assim fazendo, encontraremos no real, ou seja, em tudo o que existe - previamente aceito em sua consistência e autonomia - o sentido da “presença ontológica” ou “presença criadora” de Deus. (Continuaremos no próximo artigo da série)






    Marcos Sassatelli, Frade dominicano
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
    Professor aposentado de Filosofia da UFG

    Goiânia, 05 de maio de 2023







    A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos