No artigo anterior “O Ser humano com o mundo
material e vivente e com os outros” (da
série de artigos sobre o Ser Humano, intercalados com outros) vimos que a
vida do Ser humano "se encontra sempre em certas circunstâncias, uma disposição em torno das coisas e
demais pessoas. Não se vive num mundo vago, já que o mundo vital é constitutivamente circunstância, é este mundo, aqui,
agora. E circunstância é alguma coisa determinada, fechada, mas ao mesmo
tempo aberta e com largueza interior, com vão ou concavidade onde mover-se,
onde decidir-se: a circunstância é um álveo que a vida se vai fazendo dentro de
um rio inexorável. Viver é viver aqui e
agora - o aqui e o agora são rígidos, impermutáveis, mas amplos" (Ortega
y Gasset, J. Que é Filosofia? (Lição XI). Livro Ibero-Americano, Rio de
Janeiro, 19712, p. 184).
O Ser humano “é estruturalmente orientado para o futuro;
ele é um ser estruturalmente aberto à
esperança. O futuro esconde possibilidades que o Ser humano nunca pode
conhecer inteiramente. Todas estas possibilidades se referem ao Ser humano: são
suas possibilidades, embora não possa realizá-las e nem as realizará todas. Por
isso, o Ser humano pode olhar para o
futuro com esperança (...). O Ser humano tem o direito de projetar a própria esperança também além da morte"
(Gevaert, J. Il problema dell'uomo. Introduzione all'Antropologia Filosofica.
Elle Di Ci, Torino, 19814, p. 189).
Desse “olhar para o futuro com esperança” -
uma exigência da razão e, mais ainda, da razão iluminada pela fé - nasce a relação do Ser
humano (“ser-no-mundo”) “com-o-Outro absoluto”: Deus.
A respeito dessa relação, não podemos dizer a
mesma coisa das outras duas relações: “com-o-mundo material e vivente” e
“com-os-outros” (semelhantes). Ela não é um fato incontestável, indubitável e
evidente por si mesmo; não só precisa ser
mostrada e examinada, mas demonstrada e experiênciada. Mas como?
Na tentativa de encontrar uma resposta - limitada e incompleta
evidentemente - a esta pergunta, sugerimos algumas
"pistas" de encaminhamento de nossas reflexões, que nos parecem
estar de acordo com as conquistas e exigências do mundo moderno e
contemporâneo.
Em primeiro lugar, é necessário aceitar plenamente a
consistência e a autonomia próprias do real, ou seja, de tudo o que existe. Ora, aceitar plenamente a
consistência e autonomia próprias do real significa também aceitar a "ausência cósmica" de Deus.
"Poderia alguém continuar procurando obstinadamente um 'buraco' no
funcionamento do universo e assim tentar restabelecer uma 'presença' de Deus.
De um ponto de vista estritamente lógico esse 'buraco' não é, em si,
impossível: a biologia, por exemplo, poderia, num caso extremo, ir de encontro
a fenômenos inexplicáveis pelos recursos naturais do cosmos. Mas, na realidade,
semelhante 'buraco' é pouco plausível. De um lado, a história mostra que a
ciência veio reduzindo sucessivamente, desde o século dezesseis, os campos que
pareciam depender do influxo divino. Além disso e sobretudo, a mentalidade da
ciência, o seu horizonte, as suas pressuposições de base, se impuseram a nós
mais do que os seus resultados: em particular, a convicção íntima de que o real físico se explica por si mesmo e
de que um movimento na direção de Deus, que pretendesse fundar-se nos
resultados ou questões propriamente científicas, seria um paralogismo
(raciocínio que parece verdadeiro, mas não é). Hoje, as provas chamadas 'científicas' da existência de Deus são sempre
menos usadas e menos aceitas" (Cf. Podeur, L. Imagem moderna do mundo
e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p.
120).
A procura de
"buracos" na causalidade material leva a questão de Deus para um
terreno equivocado. "Suponhamos, por exemplo, que o aparecimento da vida sobre a
terra exija uma causa extraterrestre; por que não poderia tratar-se de seres
extraterrestres, gigantes galácticos (...), que teriam vindo 'inseminar' o
globo? Não seria uma 'solução' mais econômica, do ponto de vista da lógica? (...).
Em vez de nos preocuparmos com soluções
de continuidade na trama da causalidade cósmica (que exigiriam a
intervenção de um motor extramundano),
coloquemo-nos na hipótese inversa e tentemos ver Deus neste contexto” (Ib.,
p. 121). Assim fazendo, encontraremos no real, ou seja, em tudo o que existe -
previamente aceito em sua consistência e autonomia - o sentido da “presença
ontológica” ou “presença criadora” de Deus. (Continuaremos
no próximo artigo da série)
Marcos
Sassatelli, Frade dominicanoDoutor em Filosofia
(USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)Professor aposentado
de Filosofia da UFGE-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia, 05 de maio de 2023
https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-com-o-outro-absoluto-1/
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