quarta-feira, 25 de outubro de 2023

O Ser humano histórico

 


(Continuo a série de artigos sobre o Ser humano, abordando outro tema)

O Ser humano - por “ser-no-mundo" (“no-espaço” e “no-tempo”) “com-o-mundo” (o mundo material e vivente e os outros, e o Outro absoluto/Deus), ou seja, por “ser-no-mundo” conscientemente - percebe-se a si mesmo como um ser histórico.

"Os Seres humanos desenvolvem a consciência no interior do desenvolvimento histórico real" (Marx, K. e Engels, F. A Ideologia Alemã (I - Feuerbach). Hucitec, São Paulo, 19865, p. 44, nota *).

A dimensão da "historicidade" é constitutiva e própria do Ser humano. Ora - para o Ser humano - “ser-no-mundo" como ser histórico significa “ser-no-mundo" como "projeto" (tarefa) que se concretiza e realiza (historiciza) num "processo" contínuo. A "projetualidade" e a "processualidade" são características do Ser humano enquanto ser histórico (sujeito da história, que faz a história).

A liberdade humana - uma exigência e, ao mesmo tempo, uma consequência da racionalidade - como possibilidade de escolha "situada” e "datada", é uma componente determinante da historicidade.

Por “ser-no-mundo" historicamente, o Ser humano é sempre um "vir-a-ser". O mundo - que no Ser humano se torna história - apresenta-se ao Ser humano como algo já dado (ser dado, realizado) e, ao mesmo tempo, como devir (ser ainda não dado, possível).

A história do Ser humano (como projeto e como processo sempre inacabados) é sua existência e sua existência é, por assim dizer, sua essência.

"O ser do Ser humano, que é movimento na história, nunca se acha realizado mas vai se realizando, não está definitivamente dado, pois sua essência é um contínuo estar-sendo” (Caldera, A. Serrano. Filosofia e Crise. Pela Filosofia latino-americana. Vozes, Petrópolis, 1984, p. 42).

Portanto, "entendemos o ser do Ser humano como um fazer a história e como um fazer-se pela história. Neste sentido, a própria ontologia, o ser, se torna história. O ser do Ser humano acontece na história e pela história, e esta, por seu lado, só se realiza através do desenvolvimento do ser. Há entre o ser e a história uma unidade dialética (...)" (Ib., p. 44). A história não é a expressão externa do Ser humano, mas a sua própria manifestação. "O ser do Ser humano ao se manifestar o faz historicamente e o próprio ser é um manifestar-se na história" (Ib., p. 45).

Em síntese, a dimensão da "historicidade" comporta:


*  O fato que o Ser humano se encontra situado numa tensão entre o passado já realizado por outros Seres humanos (a história passada: patrimônio cultural, em sentido amplo) e novas possibilidades futuras a serem realizadas, social e individualmente, pelos Seres humanos de hoje e de amanhã (a história presente e futura: a cultura que acontece e que irá acontecer, sempre em sentido amplo);

*   A consciência de que o Ser humano - pela sua racionalidade e liberdade "situadas" e “datadas” - pode intervir no devir histórico;

*   O assumir o mundo e a si mesmo no mundo como tarefa, sublinhando a responsabilidade, que o Ser humano tem - para com a história, sobretudo para com o futuro da humanidade (Cf. Gevaert, J. Il problema dell'Uomo. Introduzione all'Antropologia filosófica. Elle Di Ci, Torino, 19814, p. 185. Ver também: VAZ, H. C. de Lima. Ontologia e História. Duas Cidades, 1968, p. 267-280 (Cap. IX: Consciência e História). 

O Ser humano é, pois, totalmente histórico (história), mas a historicidade não é - como veremos - a totalidade do Ser humano (o Ser humano todo).  

            (No próximo artigo começarei a refletir sobre o Ser humano histórico-social)

Compartilhando:

  1. Para uma visão mais abrangente e mais aprofundada do tema dos artigos sobre Ética (ou, Antropologia ética), leia o meu livro: Ética da Libertação: uma abordagem filosófico-teológica. Editora Lutas Anticapital, Marília - SP, 2023 (384 páginas).
  2. Se estiver, pois, interessado/a em refletir - teológica e pastoralmente - sobre a Igreja renovada e libertadora (com um enfoque ético-cristão), leia o meu livro: Eclesiologia da Libertação: reflexões teológico-pastorais. Editora: a mesma, 2022 (120 páginas).



                                                                                             Site: www.lutasanticapital.com.br/
                                                                                                  E-mail: editora@lutasanticapital.com.br


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 25 de outubro de 2023

 

O artigo foi publicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-historico/

 








segunda-feira, 23 de outubro de 2023

À Comunidade Ocupação Paulo Freire

 


Carta aberta

 

Queridas irmãs e queridos irmãos, companheiras e companheiros de caminhada - heroínas e heróis, juntamente com suas crianças, da luta pelo direito à moradia digna - da Comunidade Ocupação Paulo Freire (cerca de 80 famílias), Setor Solar Ville (Goiânia - GO)

Sábado, dia 21 deste mês de outubro por volta das 10h - representantes de Ocupações do campo e da cidade, de Movimentos Sociais Populares, de Sindicatos de Trabalhadoras e Trabalhadores, de Partidos Políticos Populares, de Coletivos de Mulheres, de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), de Pastorais Sociais - com Dom João Justino, arcebispo da Arquidiocese de Goiânia - da Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil, do Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno e de outras Organizações Populares - nos encontramos na Comunidade de vocês para manifestar a nossa total solidariedade e irrestrito apoio contra as injustas ameaças de despejo da Prefeitura de Goiânia, que demostra - com isso - estar totalmente submissa aos interesses financeiros da especulação imobiliária dos donos do capital.

Todas e todos ficamos edificadas e edificados com a acolhida de vocês: uma acolhida de irmãos e irmãs, com muito calor humano e com muita amizade. Obrigado a todas e a todos. Os poderosos, “adoradores do deus dinheiro”, não têm condições de intender isso.

O direito à moradia digna é de todas e de todos. A terra que estão ocupando é de vocês. Continuem unidos e organizados. “Povo unido e organizado jamais será vencido”! Estamos com vocês. Contem conosco!

Já disse e reafirmo: o MST e os outros Movimentos Sociais, que lutam pelo Reforma Agrária Popular - o direito à terra de trabalho e de moradia no campo e na cidade - nunca realizaram, realizam e realizarão “Invasões”, mas “Ocupações”.

Toda terra sem função social no campo e na cidade; toda terra que na cidade, é “largada” - muitas vezes sem pagar impostos para o Poder Público - para futura especulação imobiliária, é de quem precisa dela para morar ou morar e trabalhar.

Repito o que já disse: os “Invasores” e verdadeiros “ladrões” do Brasil - não são as trabalhadoras e trabalhadores, mas os que fazem parte do 1% da população, que possui 50% dos bens do país.

Como cidadão, cristão, religioso e professor aposentado de Ética na UFG, reafirmo mais uma vez: todo despejo é injusto, antiético, desumano e anticristão e toda liminar de juiz, que pretende legalizar e institucionalizar a imoralidade pública do despejo, é iníqua, perversa e diabólica. Pessoa humana não se despeja! Só pode ser despejado o lixo degradável que não tem mais condições de ser reaproveitado.

Reafirmo ainda: só existem três casos nos quais as moradoras e os moradores podem ser removidos (não despejados), com muito respeito e dignidade, pelo Poder público:

Primeiro caso: se o terreno ocupado for uma área de risco de vida. Nesse caso, as moradoras e moradores devem ser removidos - com todo cuidado - o mais rápido possível e, se necessário, o Poder Público tem a obrigação de pagar o aluguel social.

Segundo caso:  se o terreno ocupado for uma área de preservação ambiental. Neste caso, porém, só depois que outras moradias estiverem prontas para receber com dignidade os novos moradores.

Terceiro caso: se o terreno ocupado for de utilidade pública. Nesse caso, vale o que eu disse no anterior.

Não esqueçamos: o sistema capitalista neoliberal é um “sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA, 385), de uma iniquidade estrutural (pecado estrutural), ou um “sistema nefasto”, porque considera "o lucro como o motivo essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produção como um direito absoluto, sem limites nem obrigações correspondentes" (Paulo VI. Desenvolvimento dos Povos - PP 26).

Estou - e estamos - com vocês! Reforma agrária popular já! Um grande abraço de seu companheiro e irmão, Frei Marcos.



Ato de solidariedade à Comunidade Ocupação Paulo Freire,
ameaçada de despejo pela Prefeitura de Goiânia




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 23 de outubro de 2023



terça-feira, 3 de outubro de 2023

O Ser humano com o Outro absoluto (3)

 


 

(Continuo as reflexões do artigo anterior - segunda parte - da série sobre o Ser humano)

Pergunto: No real, ou seja, em tudo o que existe - quais são as características da "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus? Fundamentalmente, são duas.

A primeira: ela é simultaneamente "ausência" e "presença" de Deus.

"Ausência": porque a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus (a relação ontológica ou criadora que se "concretiza" na existência dos seres) não é uma ação no sentido corrente. "O marceneiro está 'presente' ao móvel que faz, mediante o trabalho de fabricá-lo; a lua está 'presente' no oceano por meio da atração, que provoca as marés; o sol está 'presente' pela sua luz. 'Por em presença' implica 'ação sobre', 'transformação de'" (Podeur, L. Imagem moderna do mundo e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p. 126).

Ora, a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus "não é 'modificação de', mas 'pura posição'. Por isso, ela não é perceptível, mas fica como que 'oculta' atrás do mundo que ela 'põe' (...); só pode estar 'sob' o real, ou 'atrás' dele, ou 'do outro lado' dele; ela não poderia ser encontrada 'nele'" (Ib.).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus tem como "efeito" o próprio real; o sinal desta presença é a própria existência do real. Se neste momento - numa hipótese absurda - Deus não estivesse ontológica ou criadoramente presente, eu não existiria. Em outras palavras, a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus "põe" o quadro-mundo, mas - enquanto tal - não age "dentro", não "escreve" nele. A "ausência cósmica" de Deus é, portanto, inevitável e seu "silêncio cósmico", normal. A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não é percebida; ela é a condição de possibilidade da existência do real, mas não pode estar no real, porque não é um elemento ou uma dimensão do real.

"Presença": porque a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não é uma presença "física" ou "cósmica", mas uma presença muito mais intensa e muito mais profunda. Deus não é a "matéria" ou a "substância" das coisas, mas Ele as "põe" em tudo o que elas são (é esta a forma de presença mais imediata e próxima que se possa conceber). "Na presença comum de duas realidades, a existência de cada uma é pressuposta, depois são colocadas na presença uma da outra: a separação é anterior à presença, que de certo modo, é realizada de fora" (Ib., p. 127).

Na "presença ontológica" ou “presença criadora”, "a união precede e torna possível a diferença: Deus está presente ao real, de certo modo, 'antes' que ele exista e 'para que' ele exista" (Ib.),

Eu sou "eu" antes que alguém possa entrar em contato comigo, mas eu não sou "eu" (no sentido estrito do verbo ser) sem a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus que me "põe" no ser, como "põe" todas as coisas. Neste sentido, Deus é mais íntimo a mim do que eu mesmo. "Quando eu me torno presente, 'íntimo', a mim mesmo, Deus, de certo modo, 'já' está em mim: presente em mim antes de mim mesmo" (Ib. "Intimior intimo meo", escreve S. Agostinho a respeito de Deus).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus atinge o real por dentro e não por fora; é nisso que se funda toda relação para com Deus. Pela "presença ontológica" ou “presença criadora”, "Deus está no mais profundo da realidade; ele é o fundo, porque é o fundamento transcendente (absoluto) de tudo" (Ib., p. 128).



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 30 de setembro de 2023

 

O artigo foi publicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-com-o-outro-absoluto-3/

(Continuarei as reflexões no próximo artigo, a quarta parte do mesmo tema)


                                    

O Ser humano com o Outro absoluto (4)


(Continuo as reflexões do artigo anterior da série sobre o Ser humano - terceira parte)


A segunda característica da "presença ontológica" (em linguagem filosófica) ou “presença criadora” (em linguagem teológica) de Deus é: no real, ou seja, em tudo o que existe, ela implica simultaneamente “dependência” e “independência” totais.

“Dependência total”: porque, de certo modo, o real é recebido a cada instante de Deus; é "re-posto" e "re-afirmado" sem cessar por Deus, Fonte do Ser nos seres.

“Independência total”: "devemos novamente sair dos esquemas habituais da ação. Quando um ser age sobre outro, ele o modifica, o de-'forma': a ação supõe sempre um paciente ao qual ela se aplica. Se, segundo este esquema, Deus é considerado como uma força, infinita e soberana, a autonomia e a consistência do real ficam por isso mesmo extenuadas. Considera-se, de fato, que Deus e o mundo estão no mesmo nível e, neste caso, o agir de Deus só poderia significar o esmagamento do mundo, ao passo que, inversamente, qualquer indício concreto em favor da consistência das realidades físicas pareceria retirar alguma coisa de Deus" (Podeur, L. Imagem moderna do mundo e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p. 128-129).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não modifica nem transforma o mundo, mas o "põe" (o instaura) em sua consistência e autonomia.

Deus pode, sem dúvida, agir sobre o mundo, mas com isso não nos encontramos mais no nível de sua "presença ontológica" ou “presença criadora”. Logicamente, esta ação de Deus sobre o mundo só pode se realizar num segundo momento (não necessariamente cronológico, mas lógico).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus, como tal, é doação de consistência e autonomia; é condição necessária e também condição suficiente para a efetivação do real. Neste sentido, ela é pressuposta por toda atividade no mundo. Somente a massa "real" atrai, somente o fogo "real" queima, somente o átomo radioativo "real" se desintegra, etc.

"Suposta a existência do universo, não é necessário procurar fora dele a fonte do que nele se passa; ou, pelo menos, é nele que se deve procurá-la primeiro. Atingimos aqui o nível no qual funciona o pensamento científico, com o sucesso que todos sabem. Apenas, e isto é capital para o nosso problema, não temos mais que escolher entre ciência e Deus. Um e outro se articulam sem dificuldade, porque Deus encontrou o seu 'lugar' (modo humano de falar da 'presença ontológica' ou ‘presença criadora’ de Deus)" (Ib., p. 129).

Como exemplo, podemos perguntar: Foi a criação (Deus) ou a evolução que fez o Ser humano? A resposta é clara: uma e outra. O Ser humano é produto da evolução, mas, ao mesmo tempo - como todo real - é "posto" (envolvido, levado) por Deus. "Dependência total e independência total, longe de se excluírem, se implicam mutuamente" (Ib.).

Para quem sabe o que a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus comporta, "tudo se torna sinal e evocação da presença divina: desde o menor sopro de vento até o firmamento fervilhante de astros. Pode-se - deve-se - então lê-la em qualquer fenômeno e em qualquer circunstância, uma vez que a integralidade do real, no seu conjunto como nos seus detalhes, nas suas características como nas suas particularidades locais, não tem realidade senão por ela" (Ib., p. 130). Por isso, tudo o que existe - do ponto de vista ontológico ou criador - é "bom".

Por fim, a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não só deve ser "demonstrada" ("conhecida", "pensada") pelo Ser humano, mas também (como veremos) deve ser "experienciada" - "vivida", "vivenciada" - por ele em sua Práxis. “Em Deus vivemos, nos movemos e existimos” ( At 17, 28).

(Com o próximo artigo - ainda dentro da série sobre o Ser humano - começarei a refletir sobre o Ser humano histórico)

Compartilhando:

  1. Para uma visão mais aprofundada do tema dos artigos que estou escrevendo sobre Ética (ou, Antropologia ética), leia o meu livro: Ética da Libertação: uma abordagem filosófico-teológica. Editora Lutas Anticapital, Marília - SP, 2023 (384 páginas).
  2. Se estiver, pois, interessado/a em refletir - teológica e pastoralmente - sobre a Igreja renovada e libertadora, leia o meu livro: Eclesiologia da Libertação: reflexões teológico-pastorais. Editora: a mesma, 2022 (120 páginas).

                                                 https://www.culturagenial.com/a-criacao-de-adao-michelangelo/


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 30 de setembro de 2023


 

O artigo foi pulicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-com-o-outro-absoluto-4/

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Verba indenizatória - “Salários insuficientes”!

 


O Governo de Goiás - depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou leis anteriores - “voltou a propor a criação de verba indenizatória, desta vez com destinação específica para despesas com transporte e alimentação e com valores maiores, para garantir acréscimo salarial, a secretários, diretores e substitutos e ao vice-governador. A proposta do benefício alcança também servidores da Procuradoria Geral do Estado (PGE) e da Subsecretaria da Receita Estadual da Secretaria da Economia, que têm duas das principais carreiras do Estado em termos de rendimentos”.

Serão beneficiados “266 auxiliares, com valores que variam de R$ 5.680,52 a R$ 11.361,05 e impacto financeiro anual de R$ 20,25 milhões”. Vice-governador e secretários “passarão a contar com R$ 34 mil mensais” (O Popular, 13/09/23, p. 4).

“Salários insuficientes”! Lamentavelmente, é esse o argumento utilizado pelo governador Ronaldo Caiado para “justificar” a criação da “verba indenizatória”. A hipocrisia, o descaramento e (porque não dizer) a pouca-vergonha são de um cinismo tão revoltante, que - nas pessoas com um mínimo de sensibilidade humana - chegam a provocar vômito.

Vejam, em números aproximados e resumidamente, a realidade dos nossos trabalhadores e trabalhadoras. No Brasil, conforme dados divulgados nas redes sociais, cerca de 63 milhões de trabalhadores/as sobrevivem com menos da metade de um salário mínimo e cerca de 33 milhões, com menos de um salário mínimo (R$ 1.320,00). Cerca de 35 milhões de trabalhadores/as ganham até um salário mínimo e cerca de 31 milhões de trabalhadores/as, até dois salários mínimos.

Pergunto: Por que não passa pela cabeça do governador Ronaldo Caiado a ideia de propor uma “verba indenizatória” para os trabalhadores/as que sobrevivem com menos da metade de um salário mínimo, com menos de um salário mínimo ou que ganham até um salário mínimo? Esses sim que são “rendimentos insuficientes”!

“Deputados aprovam verba extra em definitivo” (Ib. 15/09/23, p. 4. Manchete). Dos 37 parlamentares presentes, 31 votaram a favor e 6 contra.

Parabenizo os deputados Mauro Rubem, Antônio Gomide e Bia de Lima (PT), Major Araujo e Eduardo Prado (PL) e Gustavo Sebba (PSDB), que - votando contra - assumiram publicamente, neste caso, um comportamento político humano, ético e cristão.

O governador Ronaldo Caiado que fez a proposta e os deputados estaduais que votar a favor, devem estar achando que o povo é idiota. Estão muito enganados!

Trata-se de mais um caso de “roubo legalizado” do dinheiro público - que é dinheiro dos pobres - e revela a total falta de ética da maioria dos nossos políticos. Não esqueçamos isso nas próximas eleições! Os parlamentares oportunistas, que usam os pobres para seus próprios interesses, devem ser banidos da Política para sempre.

O governador Ronaldo Caiado, os 31 deputados que votaram a favor da “verba indenizatória” e todos aqueles e aquelas que - silenciosa e covardemente - apoiam a proposta, lembrem-se que Deus é justo e não tolera a exploração dos pobres.

A minha advertência é a de Jesus de Nazaré aos doutores da Lei e fariseus hipócritas de ontem e de hoje.

“Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e podridão”! Assim também vocês: por fora parecem justos diante dos outros, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e injustiça”.

“Serpentes, raça de cobras venenosas! (Mt 23,27-28.33). E ainda: “Ai de vocês, os ricos, porque já têm a sua consolação!” (Lc 6,24).

Por fim, Jesus declara: “Felizes de vocês, os pobres, porque o Reino de Deus lhes pertence” (Lc 6,20). Reparem! Não diz: “lhes pertencerá”, mas “lhes pertence”. O Reino de Deus é o “Mundo Novo” acontecendo na história e, em plenitude, na meta-história (Páscoa definitiva, Vida Nova em Cristo por toda a eternidade).





Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 23 de setembro de 2023


segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Sínodo do Povo de Deus

 


Nesse tempo do Sínodo sobre Sinodalidade (outubro 21 - outubro 24), tivemos, e ainda temos, a possibilidade de viver - presencial ou virtualmente - o processo sinodal em todas as suas etapas: local, regional, nacional, continental e mundial. O tema é: “Por uma Igreja Sinodal: comunhão, participação e missão”.

A 16ª Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos sobre Sinodalidade será realizada em duas sessões: a primeira de 4 a 29 de outubro deste ano e a segunda em outubro de 2024.

Na vivência de todo o processo sinodal, a Igreja - graças a Deus e ao apoio do nosso irmão Papa Francisco - deu um passo, que a marcou profundamente e a tornou mais comunitária e mais de acordo com os ensinamentos do Concílio Ecumênico Vaticano II.

Mesmo mantendo o nome, “foram introduzidas novidades e mudanças em relação à composição dos participantes da Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos de outubro deste ano no Vaticano: 70 ‘não bispos’ também participarão como membros votantes”. Eles e elas “são nomeados pelo Papa a partir de uma lista de 140 pessoas identificadas pelas Conferências Episcopais e pela Assembleia de Patriarcas das Igrejas Católicas Orientais (20 cada). Em outras palavras, cada Assembleia continental terá que propor uma lista de 20 nomes e o Papa escolherá 10 dentre eles”. Pede-se “que as mulheres sejam em 50% e que a presença dos jovens seja valorizada”.

Entre os 70 ‘não bispos’ temos presbíteros (padres), pessoas de particular consagração (chamadas Religiosos e Religiosas) e outros cristãos e cristãs (chamados leigos e leigas), provenientes das Igrejas locais.

Outra novidade é que a Assembleia contará também com a participação - mas sem direito a voto - de facilitadores, especialistas em vários aspectos do assunto em questão. Haverá também delegados fraternos, membros de outras Igrejas e Comunidades Eclesiais.

Os cardeais Mario Grech e Jean-Claude Hollerich (respectivamente Secretário-Geral e Relator-Geral do Sínodo) apresentaram as novidades na Sala de Imprensa da Santa Sé, no dia 26 de abril deste ano.

(Fonte: https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-04/sinodo-coletiva-de-imprensa-vaticano-leigos-2023.html).

Tudo isso que aconteceu e está acontecendo no processo sinodal é positivo, mas falta muito ainda para que a Igreja volte às Fontes do Novo Testamento e dos Primeiros Pensadores Cristãos e seja realmente uma Comunidade de Irmãos e Irmãs (sem classes: Clero, Vida Religiosa, Laicato), iguais em dignidade e valor, que - na variedade dos dons e na diversidade dos serviços ou ministérios - vivem em comunhão à luz do Espírito Santo.

Jesus - antes de se entregar livremente para morrer na Cruz por amor -  pediu ao Pai: “Eu não te peço só por estes (os discípulos), mas também por aqueles/as que vão acreditar em mim por causa da palavra deles, para que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em ti. E para que também eles/as estejam em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17, 20-21).

O Concílio Ecumênico Vaticano II no ensina: “O mistério do ser humano só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo Encarnado. (...) Cristo manifesta plenamente o ser humano ao próprio ser humano e lhe descobre a sua altíssima vocação” (A Igreja no mundo de hoje - GS 22).

“A fé esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do ser humano. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas” (Ib. 11). “Todo aquele ou aquela que segue Cristo, o Homem perfeito, torna-se ele/ela também mais ser humano” (Ib. 41).

Ser cristãos ou cristãs na Igreja e no mundo significa ser plenamente ou radicalmente seres humanos. Ora, se a democracia é um valor humano, ser cristãos ou cristãs na Igreja e no mundo, significa também ser plenamente ou radicalmente democráticos/as.

Portanto, pela lógica e, sobretudo, pela coerência para com seus ensinamentos, a Igreja - como Comunidade de cristãos e cristãs, irmãos e irmãs - deve (ou, deveria) ser plenamente ou radicalmente democrática: um testemunho vivo de democracia. A própria Sinodalidade na Igreja, só será completa, quando for plena ou radicalmente democrática.

A Igreja Povo de Deus do Concílio Ecumênico Vaticano II é:

  • o jeito de ser Igreja que Jesus de Nazaré quis;
  • o jeito de ser Igreja das Primeiras Comunidades Cristãs e, hoje;
  • o jeito de ser Igreja das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Para caminhar rumo a esse ideal - profundamente evangélico e plenamente sinodal - apresento uma Proposta concreta:

Que o Sínodo dos Bispos e sua Assembleia Geral (1ª sessão), de outubro deste ano de 2023, criem - em nível local, regional, nacional, continental e mundial - seus próprios substitutos: o Sínodo do Povo de Deus e sua Assembleia Geral.



(Entre outras, lembro duas experiências de Igrejas profundamente evangélicas e plenamente sinodais (democráticas): a Igreja local (Prelazia) de S. Felix do Araguaia-MT e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Por exemplo, à época de Dom Pedro Casaldáliga, na Assembleia da Igreja de S. Felix, o voto do bispo tinha o mesmo valor do voto de qualquer outro cristão ou cristã, membro da Assembleia)





Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 18 de setembro de 2023




segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Jesus de Nazaré no 29º Grito dos Excluídos e Excluídas

 


“Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome,
Eu estou aí no meio deles e delas” (Mt 18, 20)

 

Pela minha fé, tenho certeza que - dia 7 deste mês - Jesus de Nazaré estava presente no 29º Grito dos Excluídos e Excluídas, no Setor Solar Ville, próximo às Ocupações Paulo Freire e Solar Ville, em Goiânia - GO, concluído com o almoço comunitário. Participaram do Grito cerca de mil e duzentas pessoas: crianças, adolescentes, jovens, adultas e adultos, idosas e idosos.

O tema geral foi “Vida em primeiro lugar” e o tema específico “Você tem fome e sede de quê?”.

Eu vi a presença de Jesus no rosto sofrido, mas sereno e feliz, das Trabalhadoras e Trabalhadores; no sorriso das crianças e adolescentes; na alegria das jovens e dos jovens; na garra das Pobres e dos Pobres, excluídas e excluídos de nossa sociedade capitalista, estruturalmente perversa e iníqua; na coragem e na vontade de lutar unidas e unidos, organizadas e organizados, para mudar as estruturas da sociedade, defender os Direitos Humanos e - de maneira especial - os 3T (terra, teto, trabalho), fazendo acontecer um outro mundo possível, um Mundo Novo, cada dia mais Novo: um Mundo e um Brasil onde todas e todos tenham uma vida digna.

Costumo chamar essas nossas irmãs e irmãos de heroínas e heróis.

Termino a minha homenagem a Jesus de Nazaré, presente no 29º Grito das Excluídas e Excluídos e a todas as Irmãs e Irmãos, companheiras e companheiros de caminhada e de luta, fazendo a memória de todos os  Gritos das Excluídas e Excluídos. Fazer a memória significa tornar presente as lutas do passado para fortalecer as nossas lutas de hoje.

Gritos das Excluídas e Excluídos:

  • 1995 - A vida em primeiro lugar (que se tornou o Tema Geral ou o pano de fundo de todos os Gritos)
  • 1996 - Trabalho e terra para viver
  • 1997 - Queremos justiça e dignidade
  • 1998 - Aqui é o meu país
  • 1999 - Brasil: um filho teu não foge à luta
  • 2000 - Progresso e vida: pátria sem Dívidas
  • 2001 - Por amor a essa pátria, Brasil
  • 2002 - Soberania não se negocia
  • 2003 - Tirem as mãos… o Brasil é nosso chão
  • 2004 - Brasil: mudança pra valer, o povo faz acontecer
  • 2005 - Brasil: em nossas mãos a mudança
  • 2006 - Brasil: na força da indignação, sementes de transformação
  • 2007 - Isto não vale: queremos participação no destino da nação
  • 2008 - Vida em primeiro lugar: direitos e participação popular
  • 2009 - Vida em primeiro lugar: a força da transformação está na  organização popular
  • 2010 - Vida em primeiro lugar: onde estão nossos direitos? Vamos às ruas para construir o projeto popular
  • 2011 - Pela vida grita a Terra… por direitos, todos nós!
  • 2012 - Queremos um Estado a serviço da nação, que garanta direitos a toda população
  • 2013 - Juventude que ousa lutar constrói projeto popular
  • 2014 - Ocupar ruas e praças por liberdade e direitos
  • 2015 - Que país é este, que mata gente, que a mídia mente e nos consome?
  • 2016 - Este sistema é insuportável. Exclui, degrada, mata!
  • 2017 - Vida em primeiro lugar: por direitos e democracia, a luta é todo dia
  • 2018 - Vida em primeiro lugar! Desigualdade gera violência: basta de privilégios!
  • 2019 - Vida em primeiro lugar! Este sistema não Vale: lutamos por justiça, direitos e liberdade
  • 2020 - Basta de miséria, preconceito e repressão! Queremos trabalho, terra, teto e participação!
  • 2021 - Na luta por participação popular, saúde, comida, moradia, trabalho e renda, já!
  • 2022 - 200 anos de (in)dependência. Para quem?
  • 2023 - Vida em primeira lugar! Você tem fome e sede de quê? (Cf. https://www.gritodosexcluídos.com/)
A nossa luta continua! Jesus de Nazaré caminha conosco! 


Grito dos Excluídos/as em Goiânia - https://www.ohoje.com/



Grito dos Excluídos/as no Brasil - https://www.gritodosexcluidos.com/




 

Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 10 de setembro de 2023



A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos