terça-feira, 14 de novembro de 2023

A Comunidade mãe de todas as Comunidades

 


Neste ano, a Festa litúrgica da “Dedicação da Basílica de São João do Latrão” (09/11) e os comentários sobre ela, suscitaram em mim o premente desejo de esclarecer pontos que são fundamentais, fazendo algumas reflexões teológico-pastorais a respeito da Igreja.

À luz do Evangelho, a “mãe e cabeça de todas as Igrejas” não é (como se costuma dizer) a Basílica de São João do Latrão, mas a primeira Comunidade cristã dos Atos dos Apóstolos, que devia ter sido - e que ainda deve ser - o referencial das Comunidades cristãs em todos os tempos e em todos os lugares.

A Basílica de S. João do Latrão, a primeira Igreja construída pelo imperador Constantino no século 4º em Roma (certamente não foi de graça e houve uma contrapartida), “representa” a mãe e a cabeça de todas as Igrejas que, no decorrer da história, esqueceram o Evangelho - sobretudo sua dimensão profética - e aderiram ao Poder dominante e opressor do Povo, fazendo aliança com o Imperialismo e, posteriormente, com o Feudalismo, com o Escravismo e com o Capitalismo.

A palavra “cátedra” - que não existe no Novo Testamento - é outro sinal de poder copiado do Imperialismo. Pedro nunca teve cátedra e nunca sentou em cátedra, a não ser na “cátedra da Cruz”, na qual - segundo a tradição - pediu para ser crucificado de cabeça para baixo, porque não se achava digno de ser crucificado do mesmo modo de Jesus.

O que realmente tem valor são as Comunidades cristãs dos seguidores e seguidoras de Jesus. Seus membros podem se encontrar, reunir e celebrar em diferentes lugares: nas casas (como as primeiras Comunidades Cristãs e, hoje, as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs); em Centros Comunitários (também como as Comunidades Eclesiais de Base e os Grupos dos Movimentos Sociais Populares); e em Igrejas (templos) simples e pobres. Todos esses lugares convidam seus membros ao recolhimento, à meditação, à oração, à celebração do Mistério Pascal na Vida e da Vida no Mistério Pascal e à partilha de irmãos e irmãs.

No primeiro retrato da Comunidade cristã, os Atos dos Apóstolos afirmam: “Eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos Apóstolos (não diz: na submissão ao poder dos Apóstolos), na comunhão fraterna (de irmãos e irmãs), no partir do pão e nas orações”. “Todos e todas os e as que abraçaram a fé eram unidos e unidas e colocavam em comum todas as coisas” (At 2,42.44).

As Igrejas de luxo (cheias de cálices, ostensórios e outros objetos de ouro), que começaram a ser construídas a partir de Constantino, depois da aliança da Igreja com o Poder imperial; as Igrejas palanques teatrais e as Igrejas triunfalistas não têm nada a ver com Jesus de Nazaré e seu Evangelho.

A bem da verdade, a Basílica de São João do Latrão “representa” o começo da aliança da Igreja com o Poder Imperial e sua submissão aos interesses desse Poder.

Os sinais visíveis da presença de Cristo no mundo são, antes de tudo, as Comunidades cristãs. As Igrejas ou templos de pedra - desde que sejam simples e pobres - podem também se tornar sinais visíveis da presença de Cristo, por serem lugares - além de outros - de encontro das Comunidades Cristãs.

A Igreja que quer se impor pelo poder triunfalista não é a Igreja de Jesus de Nazaré. Basta lembrar a tiara do papa (três coroas, que representam três poderes: o real, o imperial e o eclesiástico: o maior), a farisaicamente chamada “sagrada púrpura” dos cardeais, as mitras dos bispos, as cátedras episcopais, as vestimentas luxuosas, os palácios episcopais (que tinham acabado, mas que - tudo demonstra - estão voltando). Esses sinais de poder vêm do Império e não do Evangelho.

A Igreja precisa se despojar de todas as formas de poder e voltar as fontes do Novo Testamento e dos Padres da Igreja.

Como caminhos para esse fim, apresento algumas propostas:

1- Que todos os ministros e todas as ministras da Igreja - inclusive papa, bispos e padres - vivam de maneira simples e pobre (a pobreza virtude e não a pobreza miséria) como irmãos e irmãs.

2- Que a Comunidade do Bispo da Igreja que está em Roma (o Papa) seja uma das Comunidades mais pobres da Igreja: sinal da unidade de todas as Comunidades da Igreja em Roma e no mundo inteiro

3- Que a Comunidade de todos os Bispos das Igrejas Particulares, que estão nos mais diferentes lugares do mundo, seja também uma das Comunidades mais pobres de suas Igrejas: sinal da unidade de todas as Comunidades dessas mesmas Igrejas.

4- Que na Igreja do mundo inteiro acabem todos os títulos honoríficos, inclusive os Cardeais e as Catedrais, que lembram o poder da Cátedra.

(Observação: Os títulos acadêmicos não devem ser considerados títulos honoríficos; eles indicam somente a área de conhecimento, na qual determinados cristãos e determinadas cristãs estão mais preparados e preparadas para servir os irmãos e as irmãs).

5- Que acabe o Estado do Vaticano. Jesus não veio fundar um Estado.

6- Que a Igreja dê testemunho de partilha e irmandade, e seja livre para advertir e denunciar todo tipo de abuso do poder social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religioso) contra os Pobres.

7- Por fim, que a Igreja viva realmente as palavras de Jesus “Digam apenas ‘sim’, quando é ‘sim’; e ‘não’, quando é ‘não’. O que vocês disserem além disso, vem do Maligno” (Mt 5,37). À luz dessas palavras de Jesus, podemos dizer que toda diplomacia na Igreja - inclusive a diplomacia que envolve a nomeação dos bispos (que deveriam ser eleitos nas Igrejas Particulares) vem do maligno.

(Observação: Apesar de todos os “segredos”, devido a alguns serviços que prestei à Igreja, tomei conhecimento de fatos da diplomacia eclesiástica, que são de arrepiar os cabelos e que com certeza vem do Maligno. O pior é que, às vezes, a Igreja hipocritamente atribui esses fatos à ação do Espírito Santo).

Meditemos! Sejamos a Igreja de Jesus de Nazaré! 



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 13 de novembro de 2023


terça-feira, 7 de novembro de 2023

Caminhada sinodal: 2021 - 2024 - 2ª Parte: Questionamentos e Propostas

 


Depois de destacar - na 1ª parte do artigo - os pontos positivos e significativos da caminhada sinodal até o momento, apresento agora alguns questionamentos e duas propostas: pequena contribuição de um irmão para que a Igreja (que somos todos e todas nós) se torne - cada vez mais - conforme o Evangelho de Jesus de Nazaré.

Questionamentos:


1.    Sobre a Igreja e o poder

  • Por que, na história, a Igreja cedeu à tentação do poder e incorporou em suas estruturas internas elementos do imperialismo, do feudalismo, do escravismo e do capitalismo totalmente contrários ao Evangelho?

  • Por exemplo, como pôde a Igreja no Brasil - em pleno século 19 - ter ensinado e pregado que a virtude do escravo era a submissão e a virtude do dono de escravos, a benevolência? Essa prática não foi - e continua sendo - repugnante, desumana e antiética?

  • A convivência e conivência com o poder não é o pecado estrutural (eclesial e, sobretudo, eclesiástico) da Igreja, farisaicamente legitimado, legalizado e institucionalizado?

2.    Sobre a Igreja e a hierarquia

  • Os seres humanos não são criados à imagem e semelhança de Deus? Não são todos filhos e filhas de Deus, iguais em dignidade e valor?

  • Então, por que na Igreja se fala tanto em hierarquia?

  • Se a dignidade e o valor estão na pessoa humana e não no cargo que ela ocupa ou no serviço que ela presta, pode-se falar de superior ou superiora? Por uma questão de raciocínio lógico e coerência ética, não se deveria falar de coordenador ou coordenadora?

  • Numa Igreja hierárquica pode haver verdadeira comunhão? A chamada  comunhão hierárquica não é uma enganação do povo?

3.    Sobre a Igreja e a democracia

  • Por que na Igreja temos cristãos e cristãs - sobretudo ministros ordenados - que fazem sempre questão de sublinhar que a “sinodalidade” não é “democracia” e que os Conselhos Pastorais são consultivos e não deliberativos?

  • Por que há tanto medo da democracia? A Igreja não ensina que a democracia é um valor humano e um direto humano? Ela não defende todos os valores humanos e todos os direitos humanos?

  • Ainda por uma questão de raciocínio lógico e de coerência ética, se os cristãos e cristãs devem ser plenamente ou radicalmente seres humanos, não deveriam ser também plenamente ou radicalmente democráticos? Não deveriam ser um modelo de democracia?

  • A sinodalidade (o caminhar juntos) não deveria ser democracia radical? É possível a sinodalidade sem democracia? Não é - mais uma vez - uma enganação o povo?

Há tempo, um conhecido jurista brasileiro (se não estou enganado: Fábio Konder Comparato) escreveu com certa ironia: “por incrível que pareça, a palavra ‘superior’ ainda é usada somente no meio militar e no meio religioso”. Meditemos!

A Igreja - nos ensina o Concílio Vaticano II - é o Povo de Deus. Por isso -  sempre por uma questão de raciocínio lógico e de coerência ética - proponho:   

  1.  Que a 16ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos - em sua 2ª sessão (outubro 2024) - crie o Sínodo da Igreja Povo de Deusa Assembleia Geral Ordinária do Sínodo da Igreja Povo de Deus, em todos os níveis: local, regional, nacional, continental e mundial. (Retomo aqui a proposta que já tinha apresentado para a 1ª sessão da Assembleia).
  2. Que essa mesma Assembleia crie também os Sínodos Setoriais da Igreja Povo de Deus (Bispos, Presbíteros, Diáconos, Agentes das Pastorais Sacramentais ou Catequistas e Agentes das Pastorais Sicioambientais) e suas  Assembleias Gerais Ordinárias.

Serão essas Assembleias Sinodais que, em seus níveis ou em suas áreas de atuação - com as luzes do Espírito Santo e num clima de Comunhão e Participação na Missão - tomarão as decisões necessárias para a caminhada da Igreja no mundo.

Como estamos longe ainda do jeito de ser de Jesus de Nazaré e do jeito de ser Igreja que Ele sonhou! Não podemos desanimar! Um dia chegaremos lá! Esperançar é preciso!


Foto: Vatican media



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 07 de novembro de 2023


Caminhada sinodal: 2021 - 2024 - 1ª Parte: Passos positivos e significativos

 


A Igreja (Assembleia) é - ou, deveria ser - a Comunidade (Comum-unidade) de todos aqueles e aquelas que - ouvindo o chamado de Jesus: “segue-me” - imediatamente deixam tudo e o seguem.

Na diversidade dos carismas (dons) que recebem do Espírito Sando e na pluralidade dos ministérios (serviços) que prestam, os seguidores e as seguidoras de Jesus, continuam hoje sua presença visível no mundo, são seus discípulos missionários e discípulas missionárias; seus apóstolos e apóstolas, profetas e profetizas da vida. “Eu vim para que todos e todas tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Os seguidores e as seguidoras de Jesus enfrentam qualquer provação ou perseguição e - se necessário - até o martírio. Eles e elas têm fé e creem nas Palavras de Jesus: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome (por minha causa e de meu Projeto), eu estou aí no meio deles” (Mt 18,20). “Eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo” (Ib 28,20).

Na caminhada sinodal (cujo tema é: “por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”) já foram dados - até o momento -  passos positivos e significativos, que fortalecem a nossa esperança:  

  • Dois anos de caminhada “desde que, a pedido do Papa Francisco, iniciamos um longo processo de escuta e discernimento, aberto a todo o Povo de Deus, sem excluir ninguém, para ‘caminhar juntos’, sob a guia do Espírito Santo, discípulos missionários e discípulas missionárias no seguimento de Jesus Cristo”.
  • Participação de muitas pessoas - cristãos e cristãs das Comunidades e outras - nessa caminhada: nas Igrejas locais, regionais, nacionais, continentais e mundial.
  • Presença, com direito a voto, na 1ª sessão da 16ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos de representantes de todo o Povo de Deus. “Pela primeira vez, homens e mulheres foram convidados (pelo Papa Francisco), em virtude do seu batismo, a sentarem-se à mesma mesa para participarem não só nos debates, mas também nas votações desta Assembleia do Sínodo dos Bispos. Juntos, na complementaridade das nossas vocações, carismas e ministérios, escutamos intensamente a Palavra de Deus e a experiência dos outros”.
  • Centralidade dos Pobres nas preocupações, reflexões e contribuições dos membros da Assembleia.
  • Desejo dos membros da Assembleia de contar a experiência vivida “ao maior número possível de pessoas, e sobretudo àquelas que ainda não foram alcançadas ou envolvidas no processo sinodal”.
  • Partilha de tudo o que os membros da Assembleia viveram. “Queremos, com todos vocês, dar graças a Deus pela bela e rica experiência que tivemos. Vivemos este tempo abençoado em profunda comunhão com todos e todas vocês. Fomos sustentados pelas orações de vocês, trazendo conosco suas expectativas, seus questionamentos, e também seus receios”.

Como irmãos e irmãs - partilhando os valores das nossas Comunidades em todos os Continentes - procuramos “discernir aquilo que o Espírito Santo quer dizer à Igreja hoje. Assim, experimentamos também a importância de promover intercâmbios mútuos entre a tradição latina e as tradições do Oriente cristão. A participação de delegados fraternos de outras Igrejas e Comunidades Eclesiais enriqueceu profundamente os nossos debates”.

Por fim, com muita dor, declaram: “A nossa Assembleia decorreu no contexto de um mundo em crise, cujas feridas e escandalosas desigualdades ressoaram dolorosamente nos nossos corações e conferiram aos nossos trabalhos uma gravidade peculiar, tanto mais que alguns de nós vieram de países onde a guerra deflagra. Rezamos pelas vítimas da violência assassina, sem esquecer todos aqueles e aquelas que a miséria e a corrupção atiraram para os perigosos caminhos da migração. Comprometemo-nos a ser solidários e empenhados ao lado das mulheres e dos homens que operam em todo lugar do mundo como artesãos da justiça e da paz”.

(Carta ao Povo de Deus, em: https://www.cnbb.org.br/16a-assembleia-geral-ordinaria-do-sinodo-dos-bispos-divulga-carta-ao-povo-de-deus/.  Veja também: Relatório de Síntese da mesma Assembleia Geral, em: https://pascombrasil.org.br/sinodo-santa-se-divulga-relatorio-de-sintese-em-lingua-portuguesa/               

 Na segunda parte do Artigo, apresentarei alguns questionamentos e duas propostas.




Foto: Vatican media



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 07 de novembro de 2023

 


quarta-feira, 25 de outubro de 2023

O Ser humano histórico

 


(Continuo a série de artigos sobre o Ser humano, abordando outro tema)

O Ser humano - por “ser-no-mundo" (“no-espaço” e “no-tempo”) “com-o-mundo” (o mundo material e vivente e os outros, e o Outro absoluto/Deus), ou seja, por “ser-no-mundo” conscientemente - percebe-se a si mesmo como um ser histórico.

"Os Seres humanos desenvolvem a consciência no interior do desenvolvimento histórico real" (Marx, K. e Engels, F. A Ideologia Alemã (I - Feuerbach). Hucitec, São Paulo, 19865, p. 44, nota *).

A dimensão da "historicidade" é constitutiva e própria do Ser humano. Ora - para o Ser humano - “ser-no-mundo" como ser histórico significa “ser-no-mundo" como "projeto" (tarefa) que se concretiza e realiza (historiciza) num "processo" contínuo. A "projetualidade" e a "processualidade" são características do Ser humano enquanto ser histórico (sujeito da história, que faz a história).

A liberdade humana - uma exigência e, ao mesmo tempo, uma consequência da racionalidade - como possibilidade de escolha "situada” e "datada", é uma componente determinante da historicidade.

Por “ser-no-mundo" historicamente, o Ser humano é sempre um "vir-a-ser". O mundo - que no Ser humano se torna história - apresenta-se ao Ser humano como algo já dado (ser dado, realizado) e, ao mesmo tempo, como devir (ser ainda não dado, possível).

A história do Ser humano (como projeto e como processo sempre inacabados) é sua existência e sua existência é, por assim dizer, sua essência.

"O ser do Ser humano, que é movimento na história, nunca se acha realizado mas vai se realizando, não está definitivamente dado, pois sua essência é um contínuo estar-sendo” (Caldera, A. Serrano. Filosofia e Crise. Pela Filosofia latino-americana. Vozes, Petrópolis, 1984, p. 42).

Portanto, "entendemos o ser do Ser humano como um fazer a história e como um fazer-se pela história. Neste sentido, a própria ontologia, o ser, se torna história. O ser do Ser humano acontece na história e pela história, e esta, por seu lado, só se realiza através do desenvolvimento do ser. Há entre o ser e a história uma unidade dialética (...)" (Ib., p. 44). A história não é a expressão externa do Ser humano, mas a sua própria manifestação. "O ser do Ser humano ao se manifestar o faz historicamente e o próprio ser é um manifestar-se na história" (Ib., p. 45).

Em síntese, a dimensão da "historicidade" comporta:


*  O fato que o Ser humano se encontra situado numa tensão entre o passado já realizado por outros Seres humanos (a história passada: patrimônio cultural, em sentido amplo) e novas possibilidades futuras a serem realizadas, social e individualmente, pelos Seres humanos de hoje e de amanhã (a história presente e futura: a cultura que acontece e que irá acontecer, sempre em sentido amplo);

*   A consciência de que o Ser humano - pela sua racionalidade e liberdade "situadas" e “datadas” - pode intervir no devir histórico;

*   O assumir o mundo e a si mesmo no mundo como tarefa, sublinhando a responsabilidade, que o Ser humano tem - para com a história, sobretudo para com o futuro da humanidade (Cf. Gevaert, J. Il problema dell'Uomo. Introduzione all'Antropologia filosófica. Elle Di Ci, Torino, 19814, p. 185. Ver também: VAZ, H. C. de Lima. Ontologia e História. Duas Cidades, 1968, p. 267-280 (Cap. IX: Consciência e História). 

O Ser humano é, pois, totalmente histórico (história), mas a historicidade não é - como veremos - a totalidade do Ser humano (o Ser humano todo).  

            (No próximo artigo começarei a refletir sobre o Ser humano histórico-social)

Compartilhando:

  1. Para uma visão mais abrangente e mais aprofundada do tema dos artigos sobre Ética (ou, Antropologia ética), leia o meu livro: Ética da Libertação: uma abordagem filosófico-teológica. Editora Lutas Anticapital, Marília - SP, 2023 (384 páginas).
  2. Se estiver, pois, interessado/a em refletir - teológica e pastoralmente - sobre a Igreja renovada e libertadora (com um enfoque ético-cristão), leia o meu livro: Eclesiologia da Libertação: reflexões teológico-pastorais. Editora: a mesma, 2022 (120 páginas).



                                                                                             Site: www.lutasanticapital.com.br/
                                                                                                  E-mail: editora@lutasanticapital.com.br


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 25 de outubro de 2023

 

O artigo foi publicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-historico/

 








segunda-feira, 23 de outubro de 2023

À Comunidade Ocupação Paulo Freire

 


Carta aberta

 

Queridas irmãs e queridos irmãos, companheiras e companheiros de caminhada - heroínas e heróis, juntamente com suas crianças, da luta pelo direito à moradia digna - da Comunidade Ocupação Paulo Freire (cerca de 80 famílias), Setor Solar Ville (Goiânia - GO)

Sábado, dia 21 deste mês de outubro por volta das 10h - representantes de Ocupações do campo e da cidade, de Movimentos Sociais Populares, de Sindicatos de Trabalhadoras e Trabalhadores, de Partidos Políticos Populares, de Coletivos de Mulheres, de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), de Pastorais Sociais - com Dom João Justino, arcebispo da Arquidiocese de Goiânia - da Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil, do Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno e de outras Organizações Populares - nos encontramos na Comunidade de vocês para manifestar a nossa total solidariedade e irrestrito apoio contra as injustas ameaças de despejo da Prefeitura de Goiânia, que demostra - com isso - estar totalmente submissa aos interesses financeiros da especulação imobiliária dos donos do capital.

Todas e todos ficamos edificadas e edificados com a acolhida de vocês: uma acolhida de irmãos e irmãs, com muito calor humano e com muita amizade. Obrigado a todas e a todos. Os poderosos, “adoradores do deus dinheiro”, não têm condições de intender isso.

O direito à moradia digna é de todas e de todos. A terra que estão ocupando é de vocês. Continuem unidos e organizados. “Povo unido e organizado jamais será vencido”! Estamos com vocês. Contem conosco!

Já disse e reafirmo: o MST e os outros Movimentos Sociais, que lutam pelo Reforma Agrária Popular - o direito à terra de trabalho e de moradia no campo e na cidade - nunca realizaram, realizam e realizarão “Invasões”, mas “Ocupações”.

Toda terra sem função social no campo e na cidade; toda terra que na cidade, é “largada” - muitas vezes sem pagar impostos para o Poder Público - para futura especulação imobiliária, é de quem precisa dela para morar ou morar e trabalhar.

Repito o que já disse: os “Invasores” e verdadeiros “ladrões” do Brasil - não são as trabalhadoras e trabalhadores, mas os que fazem parte do 1% da população, que possui 50% dos bens do país.

Como cidadão, cristão, religioso e professor aposentado de Ética na UFG, reafirmo mais uma vez: todo despejo é injusto, antiético, desumano e anticristão e toda liminar de juiz, que pretende legalizar e institucionalizar a imoralidade pública do despejo, é iníqua, perversa e diabólica. Pessoa humana não se despeja! Só pode ser despejado o lixo degradável que não tem mais condições de ser reaproveitado.

Reafirmo ainda: só existem três casos nos quais as moradoras e os moradores podem ser removidos (não despejados), com muito respeito e dignidade, pelo Poder público:

Primeiro caso: se o terreno ocupado for uma área de risco de vida. Nesse caso, as moradoras e moradores devem ser removidos - com todo cuidado - o mais rápido possível e, se necessário, o Poder Público tem a obrigação de pagar o aluguel social.

Segundo caso:  se o terreno ocupado for uma área de preservação ambiental. Neste caso, porém, só depois que outras moradias estiverem prontas para receber com dignidade os novos moradores.

Terceiro caso: se o terreno ocupado for de utilidade pública. Nesse caso, vale o que eu disse no anterior.

Não esqueçamos: o sistema capitalista neoliberal é um “sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA, 385), de uma iniquidade estrutural (pecado estrutural), ou um “sistema nefasto”, porque considera "o lucro como o motivo essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produção como um direito absoluto, sem limites nem obrigações correspondentes" (Paulo VI. Desenvolvimento dos Povos - PP 26).

Estou - e estamos - com vocês! Reforma agrária popular já! Um grande abraço de seu companheiro e irmão, Frei Marcos.



Ato de solidariedade à Comunidade Ocupação Paulo Freire,
ameaçada de despejo pela Prefeitura de Goiânia




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 23 de outubro de 2023



terça-feira, 3 de outubro de 2023

O Ser humano com o Outro absoluto (3)

 


 

(Continuo as reflexões do artigo anterior - segunda parte - da série sobre o Ser humano)

Pergunto: No real, ou seja, em tudo o que existe - quais são as características da "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus? Fundamentalmente, são duas.

A primeira: ela é simultaneamente "ausência" e "presença" de Deus.

"Ausência": porque a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus (a relação ontológica ou criadora que se "concretiza" na existência dos seres) não é uma ação no sentido corrente. "O marceneiro está 'presente' ao móvel que faz, mediante o trabalho de fabricá-lo; a lua está 'presente' no oceano por meio da atração, que provoca as marés; o sol está 'presente' pela sua luz. 'Por em presença' implica 'ação sobre', 'transformação de'" (Podeur, L. Imagem moderna do mundo e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p. 126).

Ora, a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus "não é 'modificação de', mas 'pura posição'. Por isso, ela não é perceptível, mas fica como que 'oculta' atrás do mundo que ela 'põe' (...); só pode estar 'sob' o real, ou 'atrás' dele, ou 'do outro lado' dele; ela não poderia ser encontrada 'nele'" (Ib.).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus tem como "efeito" o próprio real; o sinal desta presença é a própria existência do real. Se neste momento - numa hipótese absurda - Deus não estivesse ontológica ou criadoramente presente, eu não existiria. Em outras palavras, a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus "põe" o quadro-mundo, mas - enquanto tal - não age "dentro", não "escreve" nele. A "ausência cósmica" de Deus é, portanto, inevitável e seu "silêncio cósmico", normal. A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não é percebida; ela é a condição de possibilidade da existência do real, mas não pode estar no real, porque não é um elemento ou uma dimensão do real.

"Presença": porque a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não é uma presença "física" ou "cósmica", mas uma presença muito mais intensa e muito mais profunda. Deus não é a "matéria" ou a "substância" das coisas, mas Ele as "põe" em tudo o que elas são (é esta a forma de presença mais imediata e próxima que se possa conceber). "Na presença comum de duas realidades, a existência de cada uma é pressuposta, depois são colocadas na presença uma da outra: a separação é anterior à presença, que de certo modo, é realizada de fora" (Ib., p. 127).

Na "presença ontológica" ou “presença criadora”, "a união precede e torna possível a diferença: Deus está presente ao real, de certo modo, 'antes' que ele exista e 'para que' ele exista" (Ib.),

Eu sou "eu" antes que alguém possa entrar em contato comigo, mas eu não sou "eu" (no sentido estrito do verbo ser) sem a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus que me "põe" no ser, como "põe" todas as coisas. Neste sentido, Deus é mais íntimo a mim do que eu mesmo. "Quando eu me torno presente, 'íntimo', a mim mesmo, Deus, de certo modo, 'já' está em mim: presente em mim antes de mim mesmo" (Ib. "Intimior intimo meo", escreve S. Agostinho a respeito de Deus).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus atinge o real por dentro e não por fora; é nisso que se funda toda relação para com Deus. Pela "presença ontológica" ou “presença criadora”, "Deus está no mais profundo da realidade; ele é o fundo, porque é o fundamento transcendente (absoluto) de tudo" (Ib., p. 128).



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 30 de setembro de 2023

 

O artigo foi publicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-com-o-outro-absoluto-3/

(Continuarei as reflexões no próximo artigo, a quarta parte do mesmo tema)


                                    

O Ser humano com o Outro absoluto (4)


(Continuo as reflexões do artigo anterior da série sobre o Ser humano - terceira parte)


A segunda característica da "presença ontológica" (em linguagem filosófica) ou “presença criadora” (em linguagem teológica) de Deus é: no real, ou seja, em tudo o que existe, ela implica simultaneamente “dependência” e “independência” totais.

“Dependência total”: porque, de certo modo, o real é recebido a cada instante de Deus; é "re-posto" e "re-afirmado" sem cessar por Deus, Fonte do Ser nos seres.

“Independência total”: "devemos novamente sair dos esquemas habituais da ação. Quando um ser age sobre outro, ele o modifica, o de-'forma': a ação supõe sempre um paciente ao qual ela se aplica. Se, segundo este esquema, Deus é considerado como uma força, infinita e soberana, a autonomia e a consistência do real ficam por isso mesmo extenuadas. Considera-se, de fato, que Deus e o mundo estão no mesmo nível e, neste caso, o agir de Deus só poderia significar o esmagamento do mundo, ao passo que, inversamente, qualquer indício concreto em favor da consistência das realidades físicas pareceria retirar alguma coisa de Deus" (Podeur, L. Imagem moderna do mundo e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p. 128-129).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não modifica nem transforma o mundo, mas o "põe" (o instaura) em sua consistência e autonomia.

Deus pode, sem dúvida, agir sobre o mundo, mas com isso não nos encontramos mais no nível de sua "presença ontológica" ou “presença criadora”. Logicamente, esta ação de Deus sobre o mundo só pode se realizar num segundo momento (não necessariamente cronológico, mas lógico).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus, como tal, é doação de consistência e autonomia; é condição necessária e também condição suficiente para a efetivação do real. Neste sentido, ela é pressuposta por toda atividade no mundo. Somente a massa "real" atrai, somente o fogo "real" queima, somente o átomo radioativo "real" se desintegra, etc.

"Suposta a existência do universo, não é necessário procurar fora dele a fonte do que nele se passa; ou, pelo menos, é nele que se deve procurá-la primeiro. Atingimos aqui o nível no qual funciona o pensamento científico, com o sucesso que todos sabem. Apenas, e isto é capital para o nosso problema, não temos mais que escolher entre ciência e Deus. Um e outro se articulam sem dificuldade, porque Deus encontrou o seu 'lugar' (modo humano de falar da 'presença ontológica' ou ‘presença criadora’ de Deus)" (Ib., p. 129).

Como exemplo, podemos perguntar: Foi a criação (Deus) ou a evolução que fez o Ser humano? A resposta é clara: uma e outra. O Ser humano é produto da evolução, mas, ao mesmo tempo - como todo real - é "posto" (envolvido, levado) por Deus. "Dependência total e independência total, longe de se excluírem, se implicam mutuamente" (Ib.).

Para quem sabe o que a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus comporta, "tudo se torna sinal e evocação da presença divina: desde o menor sopro de vento até o firmamento fervilhante de astros. Pode-se - deve-se - então lê-la em qualquer fenômeno e em qualquer circunstância, uma vez que a integralidade do real, no seu conjunto como nos seus detalhes, nas suas características como nas suas particularidades locais, não tem realidade senão por ela" (Ib., p. 130). Por isso, tudo o que existe - do ponto de vista ontológico ou criador - é "bom".

Por fim, a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não só deve ser "demonstrada" ("conhecida", "pensada") pelo Ser humano, mas também (como veremos) deve ser "experienciada" - "vivida", "vivenciada" - por ele em sua Práxis. “Em Deus vivemos, nos movemos e existimos” ( At 17, 28).

(Com o próximo artigo - ainda dentro da série sobre o Ser humano - começarei a refletir sobre o Ser humano histórico)

Compartilhando:

  1. Para uma visão mais aprofundada do tema dos artigos que estou escrevendo sobre Ética (ou, Antropologia ética), leia o meu livro: Ética da Libertação: uma abordagem filosófico-teológica. Editora Lutas Anticapital, Marília - SP, 2023 (384 páginas).
  2. Se estiver, pois, interessado/a em refletir - teológica e pastoralmente - sobre a Igreja renovada e libertadora, leia o meu livro: Eclesiologia da Libertação: reflexões teológico-pastorais. Editora: a mesma, 2022 (120 páginas).

                                                 https://www.culturagenial.com/a-criacao-de-adao-michelangelo/


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 30 de setembro de 2023


 

O artigo foi pulicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-com-o-outro-absoluto-4/

A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos