Depois de mais de um mês de interrupção, retomo hoje os meus escritos. Neste 4º artigo sobre o 2º Encontro Mundial dos Movimentos Populares (três já foram publicados) destaco o terceiro ponto marcante do Discurso do Papa: “pôr a economia a serviço dos povos” (que é a primeira grande tarefa proposta por Francisco aos Movimentos Populares).
O Papa - demostrando sempre proximidade e
empatia com os Movimentos Populares - afirma: “Por último,
gostaria que refletíssemos juntos sobre algumas tarefas importantes
neste momento histórico, pois queremos uma mudança positiva em
benefício de todos os nossos irmãos e irmãs. Disto estamos certos!
Queremos uma mudança que se enriqueça com o trabalho conjunto de
Governos, Movimentos Populares e outras forças sociais. Sabemos isto
também!”.
Mas, com muito realismo, ele reconhece:
“Não é tão fácil definir o conteúdo da mudança, ou seja, o
programa social que reflita este projeto de fraternidade e justiça
que esperamos. Neste sentido, não esperem uma receita deste
Papa. Nem o Papa nem a Igreja têm o monopólio da interpretação da
realidade social e da proposta de soluções para os problemas
contemporâneos. Atrever-me-ia a dizer que não existe uma receita. A
história é construída pelas gerações que se vão sucedendo no
horizonte de povos que avançam individuando o próprio caminho e
respeitando os valores que Deus colocou no coração”.
No entanto - como um irmão que deseja
contribuir com a luta dos Movimentos Populares - Francisco diz:
“Gostaria de vos propor três grandes tarefas que requerem a
decisiva contribuição do conjunto dos Movimentos Populares”. A
primeira é “pôr a economia a serviço dos povos”; a segunda,
“unir os nossos povos no caminho da paz e da justiça”; a
terceira, “defender a Mãe Terra” (que - afirma - “é talvez a
mais importante que devemos assumir hoje”). Comecemos com a
primeira.
O Papa - com clareza e objetividade -
afirma: “Os seres humanos e a natureza não devem estar a serviço
do dinheiro. Digamos NÃO a uma economia de exclusão e
desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia
mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra”.
Francisco - como um verdadeiro profeta -
anuncia: “A economia não deveria ser um mecanismo de acumulação,
mas a condigna administração da casa comum. Isto implica cuidar
zelosamente da casa e distribuir adequadamente os bens entre todos. A
sua finalidade não é unicamente garantir o alimento ou um ‘decoroso
sustento’. Não é sequer, embora fosse já um grande passo,
garantir o acesso aos ‘3 T’ (Terra, Teto, Trabalho) pelos
quais combateis. Uma economia verdadeiramente comunitária -
poder-se-ia dizer, uma economia de inspiração cristã - deve
garantir aos povos dignidade, ‘bem-estar e civilização em seus
múltiplos aspectos’” (cita a Encíclica “Mater et Magistra”
de São João XXIII, 3).
E ainda: “Isto envolve os ‘3 T’, mas
também acesso à educação, à saúde, à inovação, às
manifestações artísticas e culturais, à comunicação, ao esporte
e à recreação. Uma economia justa deve criar as
condições para que cada pessoa possa gozar duma infância sem
privações, desenvolver os seus talentos durante a juventude,
trabalhar com plenos direitos durante os anos de atividade e ter
acesso a uma digna aposentadoria na velhice. É uma economia onde o
ser humano, em harmonia com a natureza, estrutura todo o sistema de
produção e distribuição de tal modo que as capacidades e
necessidades de cada um encontrem um apoio adequado no ser social.
Vocês - e outros povos também - resumem este anseio duma maneira
simples e bela: ‘bem viver’”.
Acreditando, pois, na capacidade que o ser
humano tem de mudar a realidade e na força transformadora dos
Movimentos Populares, o Papa diz: “Esta economia é não apenas
desejável e necessária, mas também possível. Não é uma utopia
(irrealizável), nem uma fantasia. É uma perspectiva extremamente
realista. Podemos consegui-la. Os recursos disponíveis no mundo,
fruto do trabalho intergeracional dos povos e dos dons da criação,
são mais que suficientes para o desenvolvimento integral de ‘todos
os homens e do homem todo’” (cita a Encíclica “Populorum
Progressio” do Beato Paulo VI, 14).
Mas - constata Francisco - “o problema é
outro. Existe um sistema com outros objetivos. Um sistema que, apesar
de acelerar irresponsavelmente os ritmos da produção, apesar de
implementar métodos na indústria e na agricultura que sacrificam a
Mãe Terra na ara da ‘produtividade’, continua a negar a milhares
de milhões de irmãos os mais elementares direitos econômicos,
sociais e culturais. Este sistema atenta contra o projeto de Jesus”.
Com firmeza, o Papa declara: “A justa
distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera
filantropia. É um dever moral. Para os cristãos, o encargo é ainda
mais forte: é um mandamento. Trata-se de devolver aos pobres e às
pessoas o que lhes pertence. O destino universal dos bens não é um
adorno retórico da doutrina social da Igreja. É uma realidade
anterior à propriedade privada. A propriedade, sobretudo quando
afeta os recursos naturais, deve estar sempre em função das
necessidades das pessoas. E estas necessidades não se limitam ao
consumo. Não basta deixar cair algumas gotas, quando os pobres
agitam este copo que, por si só, nunca derrama. Os planos de
assistência que acodem a certas emergências deveriam ser pensados
apenas como respostas transitórias. Nunca poderão substituir a
verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre,
criativo, participativo e solidário”.
Como um verdadeiro irmão, Francisco nos
questiona a todos e a todas. Pergunto: Será que as Pastorais Sociais
e Ambientais da nossa Igreja encaram os planos (as obras) de
assistência como “respostas transitórias”? Será que
participam, ativa e conscientemente, das lutas de todas as forças
sociais organizadas que levam à “verdadeira inclusão”? Como
cidadãos e cidadãs, cristãos e cristãs, meditemos!
O Papa reconhece: “Neste caminho, os
Movimentos Populares têm um papel essencial (reparem: papel
essencial!), não apenas exigindo e reclamando, mas fundamentalmente
criando. Vocês são poetas sociais: criadores de trabalho,
construtores de casas, produtores de alimentos, sobretudo para os
descartados pelo mercado global”. Mais uma vez, reparem:
“descartados pelo mercado global”!
Francisco continua, pois, relatando:
“Conheci de perto várias experiências, onde os trabalhadores,
unidos em cooperativas e outras formas de organização comunitária,
conseguiram criar trabalho onde só havia sobras da economia
idólatra. As empresas recuperadas, as feiras francas e as
cooperativas de catadores de papel são exemplos desta economia
popular que surge da exclusão e que pouco a pouco, com esforço e
paciência, adota formas solidárias que a dignificam. Quão
diferente é isto do fato de os descartados pelo mercado formal serem
explorados como escravos!”.
As palavras do Papa - que são de um
realismo contundente - nos questionam, nos incomodam e nos impelem a
tomar atitudes concretas claras e sem ambiguidades. Reparem
novamente: Francisco fala de uma “economia popular, que surge da
exclusão”!
Enfim, com muita esperança, ele afirma:
“Os Governos que assumem como própria a tarefa de colocar a
economia a serviço das pessoas devem promover o fortalecimento,
melhoria, coordenação e expansão destas formas de economia popular
e produção comunitária. Isto implica melhorar os processos de
trabalho, prover de adequadas infraestruturas e garantir plenos
direitos aos trabalhadores deste setor alternativo. Quando Estado e
organizações sociais assumem, juntos, a missão dos ‘3 T’,
ativam-se os princípios de solidariedade e subsidiariedade que
permitem construir o bem comum numa democracia plena e
participativa”. Ah, se os nossos governantes tivessem essa
consciência!
Em síntese, Francisco, de um lado, fala
que a economia do sistema dominante é uma “economia de exclusão e
desigualdade”, uma “economia idólatra”; uma economia que
“mata”, que “exclui” e que “destrói a Mãe Terra”, e nos
pede para dizer “NÃO” a essa economia. De outro lado, com o
coração aberto e cheio de esperança, fala de uma “economia
popular que surge da exclusão e que pouco a pouco, com esforço e
paciência, adota formas solidárias que a dignificam”; de uma
“economia popular e produção comunitária”; de uma “economia
verdadeiramente comunitária”; de uma “economia de inspiração
cristã”; de uma “economia justa”; de uma “economia a serviço
das pessoas”.
As palavras do Papa revelam que sua tomada
de posição é claramente anticapitalista, verdadeiramente
profética, radicalmente humana e profundamente evangélica. E nós,
cidadãos e cidadãs, cristãos e cristãs, de que lado estamos? Qual
é a nossa tomada de posição?
Fr
Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor
em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor
aposentado de Filosofia da UFG
E-mail:
mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia,
28 de outubro de 2015
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