Sete anos do “Sonho Real”:
até quando a impunidade?
“Apesar da lei, do poder e das sentenças dos juízes, eu creio na Justiça”
(Geraldo Neiva, Juiz de Direito - www.gerivaldoneiva.com - 23/01/12)
Dia 16 de fevereiro de 2005. Sete anos se passaram. O “Sonho Real”, que - em outras palavras - é a Utopia do “Bem-Viver”, continua vivo. “Fazendo a memória”, ou seja, tornando presente o que aconteceu na Ocupação “Sonho Real”, queremos fortalecer a esperança de que um dia tamanha barbárie nunca mais irá acontecer.
Infelizmente, como prova o recente despejo (22/01/12) da Ocupação Pinheirinho em São José dos Campos - SP (muito parecido com o despejo da Ocupação “Sonho Real”), esse dia ainda não chegou. Precisamos apressar esse dia. Que a união dos pequenos e de todos os que lutam por um mundo novo “apresse o dia por nós esperado: de irmãos libertados de toda injustiça, de todo pecado” (Campanha da Fraternidade 1987 - Refrão do Canto de Comunhão).
Relembremos os principais fatos do despejo da Ocupação “Sonho Real. De 6 a 15 de fevereiro de 2005, de 0 às 6h, a Polícia Militar do Estado de Goiás começou a ação de reintegração de posse, realizando a chamada "Operação Inquietação", que foram dez dias de tortura física e psicológica coletiva. Cercou a área com viaturas, impediu a entrada e a saída de pessoas e cortou o fornecimento de energia elétrica. Com as sirenes ligadas, com o barulho de disparos de armas de fogo, com a explosão de bombas de efeito moral, gás de pimenta e lacrimogêneo, a Polícia Militar promoveu o terror entre os Moradores da Ocupação. Nenhuma lei permite uma Operação noturna criminosa como essa. Até hoje, temos crianças traumatizadas.
No dia 16 de fevereiro de 2005, a Polícia Militar do Estado de Goiás realizou uma verdadeira Operação Militar de Guerra, cinicamente chamada "Operação Triunfo". Numa hora e quarenta e cinco minutos, cerca de 14.000 pessoas foram despejadas de suas moradias de maneira violenta, truculenta e sem nenhum respeito pela dignidade da pessoa humana. A Operação Militar produziu 2 vítimas fatais (Pedro e Vagner), 16 feridos à bala, tornando-se um desses paraplégico (Marcelo Henrique) e 800 pessoas detidas (suspeita-se com razão que o número dos mortos e feridos seja bem maior). Esses crimes continuam até hoje impunes.
Nessa Operação Militar criminosa, ilegal e imoral, todos os Direitos Humanos fundamentais foram gravemente violados: o Direito à Vida, o Direito à Moradia, o Direito ao Trabalho, o Direito à Saúde, o Direito à Alimentação e à Água, os Direitos da Criança e do Adolescente, os Direitos da Mulher, os Direitos dos Idosos e os Direitos das Pessoas com necessidades especiais.
Depois do despejo forçado e violento, e depois de passar uma noite acampadas na Catedral de Goiânia (onde aconteceu também o velório de Vagner e Pedro num clima de muita indignação e sofrimento), cerca de mil famílias (aproximadamente 2.500 pessoas), que não tinham para onde ir, ficaram alojadas nos Ginásios de Esportes dos Bairros Novo Horizonte e Capuava (por mais de três meses) e, em seguida, no Acampamento do Grajaú (por mais de três anos) como verdadeiros refugiados de guerra. Nesse período, diversas pessoas - sobretudo crianças e idosos - morreram em consequência das condições subumanas de vida, vítimas do descaso do Poder Público do Estado de Goiás e da Prefeitura de Goiânia.
No dia 24 de fevereiro/05 - oito dias depois da Operação “Triunfo” - a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República criou uma Comissão Especial com o objetivo de apurar as violações aos Direitos Humanos na Operação de reintegração de posse, realizada por Policiais Militares no Parque Oeste Industrial em Goiânia, Estado de Goiás, no dia 16 de fevereiro do mesmo ano (Cf. Resolução N. 1, DOU - Seção 2, 24/02/05).
A Comissão analisou os três requisitos que a Emenda Constitucional, N. 45, considera necessários para a “federalização” (Incidente de Deslocamento de Competência para a Justiça Federal - IDC) dos crimes contra os Direitos Humanos: primeiro: que haja grave violação dos Direitos Humanos; segundo: que o fato praticado seja passível de sujeitar a União à responsabilidade internacional, por obrigações anteriormente assumidas em tratados e em plena vigência no país; terceiro e último: que exista algum comprometimento institucional viciado, que afete a estrutura e as relações independentes dos órgãos públicos estatais, ocasionando a necessidade de ruptura no pacto federativo para se restaurar a normalidade institucional e assegurar a proteção dos Direitos Humanos.
A Comissão reconheceu a existência do primeiro e do segundo requisitos, mas não reconheceu a existência do terceiro. Portanto, no dia 10 de abril/06, o relator da Comissão, Procurador da República Cláudio Drewes José de Siqueira - apoiado em seu parecer pelos demais membros da Comissão - conclui: “Sugiro o não deslocamento da competência para Justiça Federal do caso Parque Oeste Industrial, no que se refere à apuração e ao julgamento dos crimes ocorridos na desocupação, por não restarem preenchidos todos os requisitos constitucionalmente exigidos, recomendando, no entanto, pela continuidade da observação pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana dos trabalhos da Justiça Estadual” (Cf. Relatório da Comissão Especial).
O parecer da Comissão foi (e ainda continua sendo) uma grande decepção para todos os que lutam pela Justiça e pelos Direitos Humanos. Como pode a Comissão dizer que não existe “comprometimento institucional viciado, que afete a estrutura e as relações independentes dos órgãos públicos estatais” (terceiro requisito), se foram justamente os “órgãos públicos estatais” que praticaram o crime? Independentemente da constitucionalidade ou não da liminar de reintegração de posse da Juíza Substituta Dra. Grace Corrêa Pereira (esse é outro assunto que poderia ser discutido), a maneira como a liminar foi cumprida (as cínicas Operações “Inquietação” e “Triunfo”) foi claramente inconstitucional, antiética e criminosa. Não é possível que os membros da Comissão Especial não tenham enxergado isso. Até um cego enxergaria. Vale o ditado: não existe pior cego de quem não quer enxergar.
Diante de fatos tão evidentes, o não reconhecimento por parte da Comissão Especial do terceiro requisito - exigido pela Emenda Constitucional, N. 45, para a “federalização” das investigações - dá a impressão de um conluio entre o Estado e a Comissão e levanta suspeitas (dúvidas e interrogações) a respeito da lisura do procedimento investigativo da mesma.
Se foi a Justiça Estadual que autorizou essas Operações criminosas (a liminar poderia ter sido cumprida de outro jeito e depois de preparar um lugar digno para os moradores), é evidente que ela não tem as mínimas condições para investigar e julgar a si mesma e o Governo do Estado de Goiás. É uma questão de lógica.
No caso do despejo da Ocupação “Sonho Real”, trata-se, antes de tudo, de investigar e julgar as próprias Operações “Inquietação” e “Triunfo” como Operações criminosas, enquanto tais. Independentemente dos abusos ou excessos cometidos por alguns Militares (que também devem ser investigados e julgados), essas Operações são um crime planejado e legalmente autorizado pela Justiça - melhor seria dizer - (in)Justiça) Estadual. O despejo de 14.000 pessoas numa hora e 45 minutos (sem saber para onde levar essas pessoas) é uma violência e uma iniquidade humana premeditada, claramente inconstitucional e antiética
Portanto, nesse caso, o criminoso é o Estado de Goiás, com a conivência do Judiciário e da Prefeitura de Goiânia. Quem deve responder por ele é o então Governador do Estado de Goiás, Marconi Perillo e seus auxiliares imediatos, o Secretário da Secretaria de Segurança Pública e Justiça do Estado de Goiás, Jônathas Silva e o Comandante Geral da Polícia Militar do mesmo Estado, Cel. Marciano Basílio de Queiroz. São eles que - como já disse em outros escritos - devem ser processados e julgados. Ora, pela lógica, se o criminoso é o Estado de Goiás, ele não vai investigar a si mesmo. Cai, assim, por terra o parecer da Comissão Especial a respeito do terceiro requisito, acima mencionado.
A mesma coisa pode ser dita do recente despejo da Ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos - SP.
Enfim, a meu ver (falo como alguém que - afetiva e efetivamente solidário com os Sem-Teto - experienciou e viveu de perto o bárbaro despejo de Goiânia), a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República - presidida atualmente pela Ministra, Professora Maria do Rosário Nunes - tem a obrigação constitucional e, sobretudo, ética de “federalizar” esses dois crimes bárbaros: o do Parque Oeste Industrial em Goiânia - GO e o do Pinheirinho em S. José dos Campos - SP.
São crimes que clamam por justiça diante de Deus. Um outro mundo é possível e urgente. Lutemos para que ele aconteça. A esperança nunca morre.
Diário da Manhã, Opinião Pública, Goiânia, 16/02/12, p. 04
http://www.dmdigital.com.br/novo/#!/view?e=20120216&p=20
Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&langref=PT&cod=64434
http://www.mtst.org/index.php/noticias/203-quem-ganhou-com-o-massacre-do-pinheirinho.html
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