terça-feira, 11 de junho de 2024

Defender os que acreditam em Deus é defender a razão radicalmente

 


Há alguns dias, no O Popular de 25 e 26 de maio deste ano - publicado também na Folha de S. Paulo do dia anterior - li o artigo de Mário Sérgio Conti: “Defender os ateus é defender a razão”. Confesso que - embora respeitando muito os ateus, entre os quais tenho vários amigos - fiquei surpreso com o teor do artigo. O autor - com ironia - faz afirmações sobre o tema sem nenhuma fundamentação racional (filosófica). Cito uma: “Está firme na cadeira? Então escuta essa: deus não existe. É uma invenção compensatória”.

Lembrando, com razão, que no Brasil o Estado é laico desde 1891 e criticando o não cumprimento dessa laicidade pública, o autor usa uma expressão cínica e desrespeitosa para com todos os cristãos e cristãs. Diz ele: “Entra-se no plenário do STF e se topa com a imagem de um homem exangue, sangrando em troncos transversais. A mesma figura de mau gosto adorna o gabinete do presidente da República”. Que falta de consideração!

Numa perspectiva oposta à do jornalista M. S. Conti e no espaço de um artigo (ultrapassando-o um pouco), faço agora algumas reflexões filosóficas sobre o tema: Defender os que acreditam em Deus é defender a razão radicalmente, em todos os seus anseios e em todas suas aspirações mais profundas.

O Ser humano é um “ser-no-mundo”: a Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum (que integra o Universo). A mundanidade - espacialidade e temporalidade - é comum ao Ser humano e a todos os seres existentes. Ora, o Ser humano, por ser racional (dotado de razão), não é somente um “ser-no-mundo”, mas é também um “ser-com-o-mundo”. A "mundanidade" - "espacialidade" e "temporalidade" - torna-se "humana"; ela adquire um "sentido humano", um "valor humano"; ela torna-se "consciente" (pensante): uma realidade objetiva e subjetiva ao mesmo tempo.

"A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos Seres humanos é o seu processo de vida real" (Marx, K. e Engels, F. A Ideologia Alemã (I - Feuerbach). Hucitec, São Paulo, 19865, p. 37). A mundanidade - espacialidade e temporalidade - consciente é a condição existencial própria do Ser humano racional.

A relação do Ser humano “com-o-mundo” material e vivente e “com-os-outros” (semelhantes) é um fato evidente por si mesmo, incontestável e indubitável. Não precisa demonstrá-la, mas somente mostrá-la e examiná-la criticamente, fazendo ver que é impossível negá-la sem negar a própria existência do Ser humano. O mundo material e vivente e os outros (semelhantes) impõem-se por si mesmos, irrompem - por assim dizer - na existência de todo Ser humano. O mundo material e vivente e os outros não existem porque o Ser humano pensou e demonstrou sua existência. Antes de qualquer argumento, eles existem. Sua existência-presença é uma exigência de relacionamento, um apelo dirigido ao Ser humano e à sua responsabilidade.

"Eu sou eu e minha circunstância". A vida do Ser humano "encontra-se sempre em certas circunstâncias, uma disposição em torno das coisas e demais pessoas. Não se vive num mundo vago, já que o mundo vital é constitutivamente circunstância, é este mundo, aqui, agora. E circunstância é alguma coisa determinada, fechada, mas ao mesmo tempo aberta e com largueza interior, com vão ou concavidade onde mover-se, onde decidir-se: a circunstância é um álveo que a vida se vai fazendo dentro de um rio inexorável. Viver é viver aqui e agora - o aqui e o agora são rígidos, impermutáveis, mas amplos" (Ortega y Gasset, J. Que é Filosofia? Livro Ibero-Americano, Rio de Janeiro, 19712, p. 184).

O Ser humano é um “vir-a-ser”, um ser de busca permanente. Para o Ser humano - por ir contra seus anseios e aspirações - é repugnante pensar que com a morte (aos 70, 80, 90 ou mais anos) acaba tudo, como se nunca tivesse existido. Na experiência de vida do Ser humano, o Infinito, o Absoluto, Deus está nele e com ele. O Ser humano participa do Infinito e - Nele - torna-se também infinito.

O Ser humano “é-no-mundo”, não somente “com-o-mundo” material e vivente e “com-os-outros” (semelhantes), mas também “com-o-Outro Absoluto” (Deus). Os anseios e aspirações do Ser humano não têm limites. A felicidade que ele busca é infinita.  Essa é a maior, a mais profunda e a mais radical experiência da razão humana. A questão de Deus é, antes de tudo, uma questão da razão: uma questão filosófica ou, mais especificamente, uma questão ontológica. Consequentemente, ela torna-se também uma questão teológica, ou seja, uma questão da razão iluminada pela Fé.

“A Fé ilumina todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do Ser humano e orienta a mente para soluções plenamente humanas” (Concílio Vaticano II, GS 11). Ora, se forem soluções plenamente humanas, pela lógica são também plenamente ou radicalmente racionais.

O Ser humano - como pessoa e como sociedade - é um ser histórico e, ao mesmo tempo, meta-histórico: “já-e-ainda-não” (neste mundo, passando de condições de vida menos humanas para condições de vida mais humanas) e “além-da-morte” (na eternidade, na plenitude da vida e da felicidade).

O Ser humano, portanto, “é estruturalmente orientado para o futuro; ele é um ser estruturalmente aberto à esperança. O futuro esconde possibilidades que o Ser humano nunca pode conhecer inteiramente. Todas estas possibilidades se referem ao Ser humano: são suas possibilidades, embora não possa realizá-las e nem as realizará todas. Por isso, o Ser humano pode olhar para o futuro com esperança (...). O Ser humano tem o direito de projetar a própria esperança também além da morte" (Gevaert, J. Il problema dell'uomo. Introduzione all'Antropologia Filosofica. Elle Di Ci, Torino, 19814, p. 189).

Desse “olhar para o futuro com esperança” - que é uma exigência da razão e, mais ainda, da razão iluminada pela fé - nasce a relação do Ser humano (“ser-no-mundo”) “com-o-Outro Absoluto” (Deus). A respeito dessa relação, não podemos dizer a mesma coisa das outras duas relações: “com-o-mundo” material e vivente e “com-os-outros” (semelhantes). Ela não é um fato incontestável, indubitável e evidente por si mesma; não só precisa ser mostrada e examinada, mas demonstrada e experiênciada. Mas como?

Precisamos reencontrar no real - previamente aceito em sua consistência e autonomia - o sentido da "presença ontológica" (em linguagem filosófica) ou “presença criadora” (em linguagem teológica) de Deus (Cf. Podeur, L. Imagem moderna do mundo e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p. 117- 142).

As ciências explicam ou poderão explicar - experimentalmente - tudo o que acontece ou acontecerá no mundo, desde a existência do Planeta Terra até a tempestade de ontem.

A filosofia (à luz da razão) e a teologia (à luz da razão, iluminada pela Fé) não são ciências, mas o horizonte no qual todas as ciências ganham profundidade de sentido.


Elas partem da explicação "experimental", vão além dela, voltam para ela e, assim, num processo contínuo de reflexão, procuram "compreender" sempre mais profundamente o mundo, seu sentido e seu valor.


E ainda, elas nos abrem o caminho para reconhecer em nossa existência a “presença ontológica” ou “presença criadora” de Deus, que designa a presença da Fonte ou Fundamento absoluto do Ser nos seres. O mundo "perpetuamente, a cada instante, atualmente, é 'posto' por Deus, 'sustentado' e 'fundado' por Ele na existência". Sem Deus atualmente "pondo" o mundo, ele não existiria.


Defender a razão radicalmente significa, pois, reconhecer e experienciar a “presença ontológica” ou “presença criadora” de Deus em cada momento da nossa existência. É ela que dá sentido à nossa vida de Seres humanos e divinos ao mesmo tempo (Cf. Ib.).


Por fim, defender a razão radicalmente significa também denunciar e combater o uso manipulado de Deus e da Fé para legitimar e legalizar situações sociais injustas, desumanas e antiéticas.

Para uma visão mais aprofundada e abrangente do tema tratado, leia o meu livro: Ética da Libertação. Uma abordagem filosófico-teológica. Lutas Anticapital, Marília - SP, 2023, pág. 384 (três partes: O Ser humano - O Ser humano como Ser de Práxis - O Ser humano práxico como Ser de Ética).

www.lutasanticapital.com.br/ - editora@lutasanticapital.com.br




Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br


Goiânia, 10 de junho de 2024


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